70 ANOS DUDH | REFLEXÕES
Entre direitos e deveres, calçar os sapatos dos outros
Fernanda Capitão*
Sim, é isso mesmo. Falar de empatia é dar asas à imaginação. Ter a capacidade de partir por esse mundo fora sem comprar um bilhete de comboio, meter-me à estrada ou embarcar num avião. Conhecer culturas diferentes, ultrapassar desafios, superar medos e anseios. Partilhar alegrias e tristezas, sentir o bater do coração do outro e tropeçar nas pedras do seu caminho.
Sim, é uma opção de vida contruída numa base de direitos e deveres: o direito à liberdade de escolher a forma como quero viver e o dever de agir para com os outros em espírito de fraternidade. Este equilíbrio de quem se sente a andar num arame sem rede, não por mim, mas por todas essas vidas que cruzam a minha e me fazem ver quão débil é a linha que separa a minha da sua liberdade e a minha da sua dignidade humana.
Sim, é verdade. Existem pessoas a quem a vida já tirou quase tudo, que vivem de lembranças de tempos idos, memórias feitas de trabalho e lágrimas, histórias de terras e vidas distantes. Mas nos olhos, bem lá no fundo, a par da fragilidade que o sofrimento turvou, brilha a esperança que os seus filhos possam escolher em liberdade de oportunidade o que querem ser e viver uma vida plena e digna.
Falar sobre pessoas é falar sobre a coragem de embarcar na maior aventura das suas vidas. É falar de renascimento e de amor. É falar de como o amor nos une e em seu nome, quebrar qualquer barreira e embarcar juntos na aventura que é a fraternidade aliada à justiça e à solidariedade.
Falar sobre solidariedade é falar sobre entrega. É falar sobre quem doa umas horas da sua semana para acolher, escutar, aconselhar, encaminhar e apoiar. De quem faz da sua vida doação e coloca a render os seus dons, não para ser visto ou por proselitismo, mas porque assumiu o compromisso de colocar-se ao lado dos mais pobres e tentar ser a sua voz quando já a perderam. De quem é capaz de doar um pouco da sua bagagem e a partilhar por saber que, nesse momento, essa partilha poderá fazer toda a diferença na vida de outras pessoas.
Falar de compromisso é falar de quem se deixa desinstalar, de quem quebra a cultura da indiferença que se instalou nas nossas comunidades.
O ano passado celebrámos os 400 anos do carisma vicentino. Foi uma oportunidade de celebrar e refletir na herança que São Vicente de Paulo nos deixou, o serviço humilde aos mais pobres. Não numa linha de assistencialismo mas na luta pela promoção de cada um dos nossos irmãos, apoiá-los na construção de um projeto de vida digno.
Falar de dignidade é falar na necessidade de ler os sinais dos tempos, o contexto económico e social em que nos integramos, planear e projetar de acordo com os recursos humanos e materiais disponíveis, para da melhor forma possível responder às necessidades básicas dos mais pobres.
É acreditar na vontade de ir mais além de direitos e deveres, calçar os sapatos dos outros, e sonhar que todos nascemos para a felicidade, independentemente de onde nascemos ou vivemos, de onde partimos ou chegamos.
Por fim, é falar sobre um caminho que se percorre dia-a-dia, ao lado de pessoas de boa vontade, ultrapassando todas as dificuldades na certeza que estamos do lado certo na luta pela promoção e dignidade da vida humana.
*Presidente da Sociedade de São Vicente de Paulo – CCAveiro
(Rubrica que se insere no âmbito das comemorações do 70º Aniversário da proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos – Plataforma “Aveiro Direitos Humanos” / Diário de Aveiro)