Letra viva | Valores de uma cultura que cuida e não mata
Rubrica dedicada à reflexão sobre o dever de cuidar de todos e os riscos de legalizar a eutanásia
Walter Osswald*
Os projectos de lei tendo como objectivo despenalizar a eutanásia configuram um erro e poderão ter, se aprovados, graves consequências a nível da medicina, do direito e da própria estrutura da sociedade.
Vamos demonstrar que estas afirmações são correctas. Assim,
1. A iniciativa legislativa está errada. Na realidade, os teóricos do direito afirmam que se não deve legislar quando a matéria em causa divide profundamente a sociedade e/ou quando não existe uma forte corrente de opinião pública a exigir que se legisle em determinada matéria. Ora, como é sabido, a eutanásia representa um factor de divisão na sociedade portuguesa e não existe um movimento de opinião significativo a pedir legislação nesta área (há uma petição a favor da eutanásia, com 8 mil assinaturas e outra contra, com 13 mil). O menos que se pode dizer é que se trata de uma iniciativa extemporânea.
2. Há menos de 2 anos, projectos de lei análogos aos que agora se apresentam foram reprovados pela Assembleia da República, por maioria simples. É indecoroso e lesivo da ética republicana agendar nova investida, apenas por tacticismo, tendo em conta que a actual composição das bancadas deve assegurar uma votação a favor da despenalização.
3. A ser aprovada a despenalização da eutanásia e do suicídio com ajuda médica, as consequências imediatas e tardias serão catastróficas. Em primeiro lugar, por se enfraquecer enormemente o conceito de inviolabilidade da vida humana e de respeito por este fundamento de todos os direitos e de todos os valores. A vida passará a ser um valor relativo, não absoluto, dependente das circunstâncias, já que haverá vidas que podem ser descartadas e licença para matar (é certo que em determinadas condições, vastas porém e mal definidas). A nível da sociedade, a valorização da doença crónica e incapacitante, da idade avançada, das incapacidades psíquicas e físicas sofrerá uma enorme erosão. Nas famílias, essas pessoas poderão vir a ser olhadas como incómodas, empecilhos e sobrecargas indesejáveis. Haverá coacção implícita, pois os que se encontram nessa situação e que tantas vezes declaram que não servem para nada e só dão canseiras e trabalho se sentirão impelidos a terem gestos de altruísmo, solicitando a sua própria morte para não se tornarem pesados para os seus.
O suicídio, até agora considerado como flagelo social a minorar (na DGS há um plano pluri-anual de combate ao suicídio) passará a ser apenas uma forma, como qualquer outra, de morrer; eventualmente será proibido que se tente impedir um potencial suicida de saltar de uma ponte ou de se atirar para baixo de um comboio; ou de tratar nos hospitais pessoas que tentaram suicidar-se com recurso a medicamentos.
4. Os médicos dividir-se-ão entre uma enorme maioria, que rejeita a prática de actos eutanasiantes, e uma escassa minoria, que entenderá poder colaborar numa medida despenalizada. A Ordem dos Médicos, aliás na senda da Associação Médica Mundial, rejeita liminarmente a eutanásia e a ajuda ao suicídio, mas os proponentes da despenalização ignoram, pelos vistos, estas posições públicas, parecendo assim desprezar a opinião dos verdadeiros peritos na matéria.
5. A experiência dos 3 pequenos países, únicos no contexto das nações a legalizar a eutanásia (Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo), não deixa dúvidas: começaram por legislação relativamente restritiva e no decurso dos anos foram alargando as indicações (que hoje já abrangem crianças e incapazes de pedirem a morte), numa clara demonstração da existência da rampa deslizante; o que é excepcional tende a tornar-se habitual.
Por tudo isto, concluo: despenalizar a eutanásia constituiria um erro de graves consequências.