Sáb. Mai 24th, 2025
Figura 1. Digitalização do apontamento do Padre Miguel Henriques, transcrito em 1935, com a mezinha confecionada com milho branco, açúcar amarelo e água

Um olhar atento ao tempo que flui


Victor Bandeira*

O espólio que reapareceu à luz do dia em Dezembro de 2022, pertencente ao Padre Miguel Henriques (1873-1948, natural de Veiros – Estarreja), incluía uma série de apontamentos com curiosidades das mais diversas índoles. Entre elas, destacam-se duas receitas de mezinhas caseiras, passíveis de serem confecionadas por qualquer pessoa em casa. Uma das mezinhas tinha como finalidade atenuar a “tosse com rouquidão”, a outra, problemas estomacais.

A primeira mezinha foi transcrita a 19 de Novembro de 1935, pelo Padre Miguel Henriques, a partir do Livro de Família do Dr. João Carlos d’Assis Pereira de Melo, do lugar da Mâmoa, em Veiros, que se encontrava, à data, na mão de seu filho, Dr. Joaquim Lívio d’Assis Pereira de Melo, proprietário da casa e quinta que foi dos seus pais:

«Remédio para a tosse com rouquidão ou perda de voz, filha de constipação e catarro _

Coze-se um pouco de milho branco e, depois de coada a água, toma-se adoçada com açúcar, pela manhã, em jejum. Dentro de dois ou três dias fica o doente com a voz natural.» (transcrição com a norma actual)

Ora, hoje em dia, este remédio seria difícil de replicar, porque o milho branco já é complicado encontrar, em virtude de ter vindo a ser substituído pelo milho amarelo (embora o milho branco fosse, outrora, muito utilizado para fazer a farinha de milho com que se fazia a massa para o pão). Deve ter-se em consideração que o açúcar utilizado, à época, era o açúcar amarelo e não o açúcar branco refinado, mais utilizado na actualidade.

A segunda mezinha é referente a um remédio que, segundo o Padre Miguel Henriques, lhe foi transmitido por um primo, chamado João, que vivia na Malhada, um pequeno arruamento/lugar de Veiros. Este remédio serviria para o restabelecimento do estômago:

«Lembrança de um remédio que deu nosso primo João, da Malhada

Primeiramente uma púcara que leve um quartilho de água quente a ferver. Depois juntar uma porção de flor de sabugueiro e outra de cabeças de marcela. E depois deitar-lhe dentro até arrefecer. E depois deitar-lhe meio quartilho de mel e, meio de aguardente, primeiro que torne o lume, digo depois de tornar ao lume, a desfazer o mel. Depois se deitará numa garrafa e se tomará cada dia, em jejum, um quarteirão de quartilho.

Diz que é muito bom para restabelecer o estômago e livrar de maior moléstia.» (transcrição com a norma actual)

Para esta segunda receita, em termos de medidas, um quartilho corresponde a meio litro. Assim, a preparação da mezinha inicia com a fervura de meio litro de água, prevendo ainda a introdução de 250 mL de mel e a mesma medida em aguardente. Quanto aos ingredientes mais relacionados com a flora utilizada, a receita não faz indicação das quantidades das estruturas das duas espécies que a compõem, depreendendo-se que seja ao gosto de cada preparador. Deste modo, utilizam-se flores de sabugueiro (Sambucus nigra L.), cuja época de floração ocorre entre Fevereiro e Setembro, o que restringe a sua utilização ao período entre o Inverno e o Verão. A segunda espécie utilizada é a marcela [ex. Chamaemelum nobile (L.) All.], em que se faz referência a uma porção de cabeças desta flor a adicionar à receita. De facto, torna-se perceptível de que estrutura se trata (cabeças), dado que esta pequena herbácea apresenta duas variedades, uma com e outra sem flores liguladas de cor branca que envolvem as flores centrais de cor amarela, ficando, apenas, a “cabeça” da flor. Na verdade, a estrutura nesta espécie a que nós vulgarmente chamamos de flor, trata-se de um conjunto de flores da família das Compostas, a família Asteraceae. O período de floração é menor do que o do sabugueiro, ocorrendo entre Abril e Setembro. Deste modo, depreende-se que esta mezinha só poderia ser feita entre os meses de Abril e Setembro, isto é, na Primavera e no Verão, quando é possível encontrar as estruturas florais mencionadas.

É curioso que ambas as mezinhas poderiam ser extremamente necessárias para o bem-estar e a qualidade de vida de um sacerdote.

A primeira porque, segundo o apontamento, ao fim de um período de três dias, clareava a voz, atenuava a tosse ou a rouquidão, permitindo que o sacerdote voltasse a ter a voz natural. (A voz é um instrumento e uma ferramenta indispensável ao sacerdote para poder celebrar a liturgia, administrar os sacramentos, proferir as homilias, os “sermões” e as “pregações”, como tal, era imprescindível mantê-la funcional e saudável.)

A segunda mezinha, porque atenuava os problemas estomacais, restabeleceria o estômago e a sua função, cujas disfunções poderiam ser incomodativas e, por vezes, em situações mais agudas, poderiam impedir o sacerdote de continuar o seu dia de trabalho na paróquia com tais indisposições. O sacerdote era elemento convidado “obrigatório” em festas de família, nas festas dos sacramentos, ou dos oragos da paróquia, e a sua passagem pelas várias casas e famílias poderia ser motivo suficiente para mais abusos na dieta, o que o levaria a comprometer a agenda para as horas, ou dias seguintes. A ingestão da segunda mezinha poderia ser a sua salvação, tomando cerca de 125 mL do remédio, em jejum e a cada dia.

 


Referências

Pinho R., Lopes L., Maia P. & Marques R. (2018). Guia de Flora – Baixo Vouga Lagunar. Câmara Municipal de Estarreja. Estarreja. 363 pp.

Figura 1. Digitalização do apontamento do Padre Miguel Henriques, transcrito em 1935, com a mezinha confecionada com milho branco, açúcar amarelo e água.

Figura 2. Digitalização do apontamento do Padre Miguel Henriques com a mezinha confecionada com sabugueiro, marcela, mel, aguardente e água.

 


*Victor Bandeira, PhD
Departamento de Biologia e CESAM – Centro de Estudos do Ambiente e do Mar

Universidade de Aveiro