O Rosto da Igreja
Tiago Azevedo Ramalho
No primeiro volume da série das Oeuvres complètes que, desde há cerca de uma década, se encontra em curso de edição, lê-se, da pena de Emmanuel Levinas, uma suave e firme evocação do filósofo Henri Bergson. Palavra de um mestre a convocar outro mestre, memória de vidas entretecidas numa só história: história de drama e de abismos, mas também de altura e de graça – história salvífica.
Após recordar, em breves parágrafos, a coragem intelectual de Bergson, Levinas fixa a atenção num evento ocorrido quase no final da respectiva vida, por altura de 1940, estando a França ocupada por forças nacional-socialistas que gozavam da colaboração das autoridades nacionais. Bergson era então autor consagradíssimo: homem de Paris, onde nasceu e morreu, foi professor do Collège de France, membro da Academia de Ciências Morais e Políticas, da Academia Francesa, também Prémio Nobel da Literatura. É percurso que procura os seus paralelos. Conta então Levinas, a quem traduzo:
«Sabemos qual foi, desde 1940, a força diabólica das falsas ciências. Nada mais sobrava, nestas horas de desespero, do que a grandeza da conduta. Bergson foi aqui, de novo, igual a si próprio. Ainda que muito próximo do catolicismo, este grande Francês era israelita. Em 1940, já adoecido, apresenta-se humildemente diante do Comissário da Polícia do seu quartier para se fazer recensear como Judeu. Viria a morrer pouco tempo depois. Auschwitz foi-lhe poupado. Mas procurava ele tal favor? Explicando nesta hora de desespero a razão pela qual não dava o passo decisivo do baptismo, escrevia em 1937: “Quis permanecer entre aqueles que serão amanhã os perseguidos.”»
Conheceu o cristianismo antigo, feito ainda de tempos longos de catecumenado, o «baptismo» daqueles que, pretendendo ingressar na fé cristã, morriam antes de a ela se haverem perfeitamente associado pelo rito da água. Nela ingressavam então pela fonte do sangue derramado, testemunho de vida no momento da morte. Água e sangue que brotam, afinal, de um mesmo Lado aberto.
Mas agora, em Bergson, não é de um tal «baptismo de intenção» selado pelo rito do sangue que se trata – mas de uma espécie de firme «intenção de não baptismo». É ela uma recusa? Ou uma entrega? Bergson está dentro ou está fora?
Por meu lado, imagino o filósofo, então com quatro vezes vinte anos e em acentuada debilidade física, nesse preciso momento em que avança para se recensear. Sereno, despede-se do seu mundo: sabe-se, pela sua decisão, doravante colocado nas mãos de outros, ao efeito do seu poder, do seu insulto grosseiro e fácil, do seu capricho vulgar e desordenado, da sua incontinente força animal. Sabe, mas vai: segue em passo cansado, embora firme; ofegante por vezes, pára, mas apenas para recobrar uma marcha revigorada. A idade não lhe consente ilusões quanto ao tempo em que está e quanto àquele que virá; os duros rigores da exercitação espiritual – a ascese – disciplinaram-no a não se bastar senão com a lucidez. No seu rosto, porém, não se vê qualquer traço de hostilidade: aquele que perdoou antes da ofensa já a ninguém pode odiar, mas apenas mostrar a violência que contra si é exercida. Suprema epifania do lógos.
Imagino também alguns que com ele se cruzam. De noite e em jeito de quem se pretende rapidamente libertar do que viu e preferira não ter visto, envergonhados por aquela marcha não ser a sua mas ser de alguém, dirão decerto: «como ia, o desgraçado Bergson, qual mansa ovelha para o matadouro». Ele, o mestre, não fala, nada diz – sabe que esta é a sua hora, hora de, àqueles com quem esteve no mundo, os amar até ao fim.