Sáb. Mai 24th, 2025
Direto ao contraditório | Uma rubrica dedicada à reflexão crítica sobre as certezas de sociedade tidas como insofismáveis

Tiago Azevedo Ramalho*

Li algures, a respeito das manifestações que, inicialmente motivadas pela legítima repulsa do excesso policial, vêm desafiando a ordem pública, que por seu intermédio se ataca um dos baluartes do Estado de Direito. Seguramente que as forças policiais, como quaisquer outras instituições sociais integradas por seres humanos, agem por vezes de modo indevido e digno de censura. E também são movidas, na sua actuação, pelos mesmos preconceitos que se encontram presentes no conjunto da sociedade – nalguns casos até porventura mais, noutros decerto um pouco menos. Mas daí a colocar-se em causa a própria necessidade de uma ordem pública e dos agentes necessários para a respectiva conservação vai uma longa distância.

Enquanto lia uma reflexão como a que parafraseei nas últimas linhas, o meu pensamento voou para um outro acontecimento que, à época, colonizou durante algum tempo o circuito mediático: o assassinato, em Janeiro de 2015, de um conjunto de membros do jornal Charlie Hebdo e de agentes da polícia francesa por parte de dois homicidas apresentados como franco-argelinos de religião muçulmana. De modo totalmente justificado, o acto motivou uma generalizada indignação. Mas da justificada repulsa passou-se rapidamente ao bombardeamento mediático, a ponto de se criar um novo mote para uma solidariedade de crachá, que se reproduziu incontáveis vezes: Je suis Charlie. E depois? Depois mudou-se de assunto.

Algo vai muito mal numa sociedade quando aquilo que num segundo coloniza a totalidade da comunicação é inteiramente ignorado no instante seguinte. É uma sociedade em anestesia permanente, ou transe constante, incapaz, portanto, de um qualquer tipo de pensamento reflectido que supõe sempre um distanciamento crítico em relação à actualidade. Distanciar-se significa abdicar, por momentos, de viver na voragem do momento, na vivência do soundbite, para interrogar o próprio presente (“será que o significado deste acontecimento é realmente aquele que me é apresentado?”), de modo a, mediante essa releitura crítica, recalibrar o pensamento e ajustar a acção. Mas depois mudou-se de assunto. Com efeito, seguiram-se os refugiados, depois chamados imigrantes, e depois ainda migrantes económicos. A guerra na Síria. O Bataclan. A decisão apocalíptica do Brexit. A tentativa de golpe de Estado na Turquia. Outra vez a guerra na Síria. O impeachment de Dilma. A eleição também apocalíptica do Presidente Trump. Os incêndios de Pedrógão Grande. A Venezuela. A crise dos rohingyas. A “independência” da Catalunha.  A eleição também apocalíptica de Jair Bolsonaro. Os “coletes amarelos”. Os incêndios da Austrália. E os da Amazónia. Greta Thunberg nos Parlamentos a falar aos Doutores. A COVID-19. Sucedem-se como simples factos avulsos, repetidos, e não como momentos de uma história. Para serem história, seria necessário que houvesse contexto, interpretação, abordagem crítica – que cada um dos acontecimentos sobrevivesse ao seu próprio momento.

Lembrei-me do Charlie Hebdo, diziaAo tempo, o caso foi interpretado como um conflito entre a liberdade de expressão e o fanatismo de um certo tipo de vivência religiosa. Tal interpretação veicula seguramente qualquer coisa de correcto, ou nem sequer se lograria impor. Mas parece estar longe de captar o núcleo do problema, o que efectivamente justifica que seja de condenar no acto. Ao não captar o fundamental, impede que a sociedade se reorganize de modo a proteger o que nela é realmente fundamental.

Se bem vejo, no Charlie Hebdo não foi directamente a liberdade de expressão que se atacou, mas, antes, um ainda mais relevante princípio do Estado do Direito: a proibição da acção directa, isto é, da iniciativa do recurso individual à força. A contraprova é a seguinte: mesmo que se entendesse que as publicações do Charlie Hebdo, pelas suas características (uma certa grosseria, provocação gratuita,…), não se encontravam justificadas pela liberdade de expressão, ainda assim o homicídio continuaria a merecer completa e irrestrita censura – precisamente porque o que estava em jogo era, não a liberdade de expressão, mas o princípio de que não é pelas próprias mãos que se coloca termo a um conflito, nem, muito menos, colocando em causa a vida daqueles que, em entender dos agressores, ferem ilegitimamente o seu quadro de valores. Não é preciso ser Charlie, ou ter sido Charlie, para censurar radicalmente o acto homicida. Aliás, pode mesmo censurar-se inteiramente Charlie Hebdo e os seus conteúdos continuando a repudiar incondicionalmente o acto homicida. Porque não é usando da violência autolegitimada, às vezes contra estátuas, às vezes contra corpos, às vezes contra vidas, que se pode colocar termo a um conflito de um modo humanamente razoável.

Já não vamos a tempo de mudar o modo como deveríamos ter interpretado aquele acto. Mas a história, como exercício de reflexão sobre a memória realizado no presente, tem a virtualidade de poder ser sempre dita de novo, e de finalmente trazer ao de cima o que, para os contemporâneos, não se discernia com clareza. Talvez assim se possa, em lugar da desorientação resultante de se ver entregue à mera sucessão avulsa de acontecimentos, tomar em mãos o próprio destino, para o colocar num rumo razoável.


*Professor Auxiliar Convidado da Faculdade de Direito da Universidade do Porto
Imagem de Reimund Bertrams por Pixabay