Sáb. Mai 24th, 2025
Directo ao contraditório | Uma rubrica dedicada à reflexão crítica sobre as certezas de sociedade tidas como insofismáveis

Tiago Azevedo Ramalho

Nestes dias, voltou à Europa ocidental o que porventura desde finais da segunda grande guerra dela se encontrava ausente. Não foi a guerra enquanto tal. Essa, fosse na Europa, fosse fora da Europa com a activa participação de Estados europeus, não esteve de todo ausente nas últimas décadas, nem sequer nos últimos anos. Também não foi a invasão de Estados soberanos. Idem, idem, aspas, aspas. Nem mesmo de Estados soberanos que não praticaram nenhum acto de agressão.

O que voltou foi o entusiasmo pela guerra. Por detrás de muitos lamentos – na sua maioria certamente sinceros –, escuta-se, de modo cada vez mais audível, o apelo a que se dê uma resposta tonitruante, poderosa, esmagadora, que desfira fortes perdas ao inimigo e o consiga repelir. A opinião pública – essa massa que a tudo julga e que por ninguém é julgada, que não é ninguém mas representa a todos, em que poucos participam, mas a ninguém exclui – pede-o com insistência; e o poder político satisfaz o anseio. E assim a guerra voltou a mobilizar contra um inimigo comum: mobiliza a atenção, mobiliza os afectos, mobiliza os desejos.

Uma Europa simultaneamente descristianizada, e por isso sem memória da sua história cristã, e desmemoriada, e por isso sem memória nenhuma, não se apercebe de que está de regresso o «espírito de cruzada». Caracteriza a «cruzada» a mobilização contra um inimigo comum que, em espírito de conquista, agride os nossos irmãos indefesos. Mobilização que nos faz esquecer dos nossos conflitos actuais, e que canaliza a violência que antes nos dividia interiormente para um adversário comum. Assim se sacraliza o outro, o nosso inimigo, tornado então objecto a destruir, pois se passou a crer que só mediante a sua eliminação poderá a paz ser restaurada. Que esta forma de mobilização é especialmente cativante é visível no modo como, naquele tempo como hoje, atrai alguns dos melhores espíritos de cada época.

Mas escuta-se a perturbante advertência evangélica: «porque reparas no argueiro que está na vista do teu irmão, e não vês a trave que está na tua vista?» (Mt 7, 3)

Houve um tempo, que já parece tão distante, em que a guerra a ninguém enganou. Era simplesmente vista como um jogo de força bruta, de violência meramente animal, de vazio a gerar mais vazio. É certo que os Estados constituíam as suas forças armadas. Mas faziam-no como quem pedia desculpa pela sua fragilidade de não saber ainda viver de uma outra forma em que delas pudesse prescindir.

Entretanto o clima mudou. A guerra voltou a ter uma estética. O combate militar, que se pensava meramente animal, readquiriu heroísmo e glória – desde que pela causa certa, evidentemente.

Não tenho qualquer dúvida de que desde uma perspectiva cristã só se pode estar ao lado das vítimas de um qualquer conflito, e que essas vítimas estão sempre dos vários lados de uma batalha. Mas um olhar cristão implicará também que se continue a alimentar a força das ideias quando estas, vorazes, pedem como alimento cada vez mais porções de realidade? Mas a solidariedade na dor, que nunca é de negar, deve ser acompanhada pela solidariedade na guerra? Em nome de quê se combate aquele a quem, num mimetismo diabólico (isto é, divisivo e dilacerante), pelo mesmo combate nos estamos a assemelhar?

Os potentados e as autoridades farão sempre as suas contas de somar e de subtrair, na expectativa de expandirem o seu espaço de domínio. «Tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares» (Mt 4, 9). Mas o Filho do Homem, que «não tem onde repousar a cabeça» (Mt 8, 20), segue por outro caminho.


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