Direto ao contraditório | Uma rubrica dedicada à reflexão crítica sobre as certezas de sociedade tidas como insofismáveis
Tiago Azevedo Ramalho
No nome Israel recobre-se uma ambiguidade que importa desimplicar – para depois manter. Quem é Israel? O Estado moderno que sobe da costa interior do Mediterrâneo até ao alto de Jerusalém? Ou a comunidade dos filhos de Jacob, depois chamado Israel, que nesse mesmo espaço veio a constituir um Reino que depois foram dois, comunidade deportada uma e outra vez, até que, desde a definitiva destruição do Templo já de si uma vez destruído e reconstruído, corria o ano de 70 d.C., se encontra dispersa pelas sete partidas do mundo?
Deste segundo Israel, volvidos os horrores do Holocausto, todos – …ao menos fossem todos… – se apiedam; mas sobre aquele primeiro impende uma impiedosa acusação. J’accuse, j’accuse, j’accuse… um zunido fustiga o espaço, dardejando contra o acusado o excepcionalismo da sua própria memória. Acusação repetida e impediosa, acusação de inimigos jurados, mas também de amigos prometidos. Dolorosa acusação… «se o ultraje viesse de um inimigo, eu poderia suportá-lo; se a agressão partisse de quem me odeia, talvez dele me escondesse. Mas és tu, meu companheiro, meu familiar e meu amigo, com quem vivia em doce intimidade e nas festas frequentava a casa de Deus» [Sl 54 (55), 13-14].
Pode distinguir-se o primeiro do segundo Israel? Pode uma oposição radical ao Estado de Israel evitar o anti-judaísmo? Em tese pode. Mas o que não é possível em tese? Difícil é agir no tempo, e prevenir a repetição daquelas lógicas a que já bastas vezes se deu manifestação. Dois mil anos de experiência impõem o reconhecimento de que não vêm sendo fáceis as paragens judaicas em lugar algum, e que a ausência de um espaço próprio, onde quer que ele se seja, vem significando a plena exposição aos faraós de cada momento. Sem o primeiro Israel, como se sustém o segundo?
Os sinais estão à vista, e permitem reconhecer um padrão já várias vezes usado. Só para recordar eventos recentes: o cancelamento de eventos onde intervenham nacionais israelitas – a intimidação crescente – aqui bem ao lado, a perturbação da ordem pública numa competição desportiva disputada por quem levava as cores daquele Estado, e tudo isto com activo aplauso das instâncias governamentais. Boicotes, suspensão da ordem, guetização. Que tudo isto especialmente ocorra nos espaços que, ainda ontem, se jactavam do zelo com que perseguiam o segundo Israel, é ponto que deveria conduzir a um cuidado exame de consciência.
Pois, no limite, nada disto tem que ver com Gaza, mesmo que no-lo repitam à saciedade. É claro que o mecanismo do bode expiatório, para poder funcionar, pressuporia essa ou outra justificação. Para ser sacrificado, o bode expiatório há-de ter uma qualquer excrescência, traços do inominável, rosto insuportável; há-de, pela sua abominabilidade, como que exigir a própria eliminação. Há-de reconhecer a sua culpa, a sua índole desenfreada, a sua aberrante condição. E haverá perversão maior do que a suprema vítima de ontem se tornar o agressor de hoje, logo que encontrando frágeis presas para a sua sede de violência?
Excepto se o acusado rejeitar a acusação, e, recusando-a, denunciar a violência daqueles que de si se aproximam. Quem não a vê? Quem não a quer ver? Há-de crer-se que, numa longa mancha verde que derramada entre Rabat, na costa ocidental de África, e Jacarta, já em pleno Sudeste asiático, a grande usurpação se dá num pequeno território, além do mais numa importante parte quase ou inteiramente desértico, na borda do Mediterrâneo? Há-de crer-se que, não obstante as múltiplas redefinições de fronteiras no fim de um grande conflito, esta e esta só, a de Israel, e apesar do que precedeu a constituição deste Estado, é a única intolerável? Na ordem das vidas perturbadas e atingidas por um conflito, não há medida para a dor dos que tudo perdem, e nenhuma gradação é aceitável. Mas há-a na ordem da política. E, nela, quem é o menor e quem é o maior? Olha-se em redor e o que se vê? «Manadas de touros me cercaram, touros de Basã me rodeiam. Abrem as fauces contra mim, como leão que devora e ruge» [Sl 21 (22), 13-15].
Nenhuma das linhas anteriores pretende justificar uma só acção militar que seja. Quem não dispõe de um aprofundado e imparcial conhecimento dos factos deve abster-se de juízos temerários; além de que pode preferir colocar a sua fidelidade numa outra ordem em que a força de quaisquer potentados humanos será reduzida à impotência. Ainda assim, uma exigência pode formular-se desde já de modo incondicionado, decidido e intransigente: que, uma vez entrado Israel na ordem da política, não se lhe aplique um double standard, recusando-lhe como Estado o que a todos os mais se admite, e mesmo se exige, e mesmo se aplaude. E, se se é cristão, uma exigência segunda, adicional: que se permaneça radicalmente com este povo de quem se herdou, e com quem se partilha, a fé e a esperança. Pode estar-se totalmente com um povo e com o seu Estado, mas ao mesmo tempo conservar a liberdade de censura de alguma acção que leve ele a cabo? Certamente que sim. Então que se esteja, e que se esteja incondicionalmente, e que não tenha Israel de atravessar a solidão a que se viu exposto o primeiro dos seus filhos.