Sinais dos Tempos
Rubrica dedicada à reflexão sobre os desafios que a pandemia de COVID-19 coloca à Igreja e ao mundo
‘Covid-19:– Que ‘mundo’ e que ‘Igreja’ estão em ocaso?– Que ‘mundo’ e que ‘Igreja’ se vislumbram na (estão em) aurora?’
Pe. João Alves*
Que ‘mundo’ e que ‘Igreja’ estão em ocaso?
O Cardeal Robert Sarah escreveu em 2019 o livro A noite vai caindo e o dia já está no ocaso. Debruça-se sobre a profunda crise espiritual, moral e política do mundo contemporâneo. Talvez a crise espiritual seja aquela que melhor marcará o ponto de encontro entre o ‘mundo’ e a ‘Igreja’ porque talvez seja esta uma crise comum: por um lado, um mundo marcado por Potências com lideranças fracas e caminhos confusos, por outro, uma Igreja com um Pastor Universal que é uma referência forte para o mundo, mas que não evita uma Igreja com crises.
A espiritualidade está em ocaso! Busca-se uma resposta fácil, talvez mais esotérica, fazendo acreditar que Eu-sou-a-força-escondida. Basta ver as estantes de literatura ‘new age’ ou as propostas de auto-ajuda e desenvolvimento pessoal. Descobre o Super-Homem (ou Super-Mulher) que há em ti! Até aparenta uma certa procura da dimensão espiritual, mas que redunda, muitas vezes, no seu contrário, uma espécie de Individualidade. É contraditório, mas a Individualidade suscita mais relativismo, mais consumismo e tudo o que alimenta o meu Eu. Será diferente uma atenção à Pessoa ou ao Indivíduo: atenção à pessoa leva a uma visão Personalista, muitas vezes valorizado todas as dimensões da pessoa humana; a atenção ao Indivíduo leva a uma autorreferenciação e a uma atenção individualista.
A Igreja viveu períodos fortes de crescimento espiritual, graças a movimentos e ordens religiosas. Hoje vive uma certa tibieza espiritual: se por um lado existe um sentimento de valorização desta dimensão, por outro lado vamos vendo uma catequese mais escolar com dificuldade de concretizar um encontro existencial; a liturgia ritualiza-se e tem dificuldade em exprimir o carater celebrativo; os grupos de espiritualidade e oração vivem a dificuldade de expressar a beleza de uma vida espiritual que alimenta a vida; a pastoral corre o risco de ser uma planificação técnica e não a construção do Reino de Deus; o ministério ordenado vive o drama do esvaziamento ativista e “sobre rodas”, picando o ponto nos acontecimentos agendados, descurando a caridade pastoral como fonte da espiritualidade ministerial.
O ocaso é sempre vivido na certeza do descanso que a noite exige e na expectativa de uma nova aurora. A vida espiritual é aquela dimensão da pessoa, do mundo e da Igreja que vive as suas “noites escuras”. Estas também fazem parte da espiritualidade.
Que ‘mundo’ e que ‘Igreja’ se vislumbram na aurora?
O Papa Francisco é uma luz que desponta na aurora do mundo. No encontro de Assis de 2016, Zygmunt Bauman encontra-se com o Papa Francisco e confidencia-lhe no encontro pessoal: “”Eu trabalhei toda a vida para tornar a humanidade um lugar mais hospitaleiro. Cheguei aos 91 anos e vi muitos falsos começos, até me tornar pessimista. Obrigado, porque você é para mim a luz no fim do túnel”. Bauman sentia-se um pessimista e não confessional que via na mensagem do Papa a luz no fim do túnel de uma “globalização negativa”. Tem razão! Os seus escritos têm uma mensagem de alegria na forma de encarar o Evangelho, a família, de viver a juventude, de olhar para a “Querida Amazónia” e para o cuidado da Casa Comum. Auxilia a Igreja a ver o mundo e a própria Igreja não a partir do centro, mas da periferia. Esta é a revolta radical porque a partir da periferia tudo pode ser visto e alcançado.
Vislumbra-se no mundo e na Igreja – e com o olhar do Papa – um despertar para uma consciência ecológica integral (ambiental, económica, social, cultural) que exige uma renovada educação e espiritualidade própria. Há gritos de Povos e da Terra que hoje têm voz e vez. A situação pandémica faz-nos despertar que o mundo não era um espaço saudável.
Vislumbra-se também uma maior consciência de um caminho de reconstrução comunitária, onde a pessoa, sobretudo os mais débeis e vulneráveis, não podem ser deixados de parte. A situação pandémica poderá fazer despertar para valores esquecidos, para a forma como vivemos a família, o trabalho, o lazer, a saúde…no fundo, a vida. Torna-se necessário retomar a “cultura da vida” que São João Paulo II defendia. Surgem oportunidades sociais e económicas onde desperdiçar essa aposta pela vida e pelo Bem da Pessoa e pelo Bem Comum serão a virtude ou o pecado capital dos nossos líderes. Direitos fundamentais do Homem e Bem-Aventuranças serão os pilares de uma aurora que pode ser caminho de construção de uma sociedade diferente, talvez até utópica, mas é possível admirar um mundo novo, pelo menos, diferente. Escutem-se hoje mais os profetas que as ideologias!
*Pároco da Vera-Cruz (Aveiro)
Membro da Comissão Permanente do Conselho Presbiteral (Secretário)
Assistente Eclesiástico da JOC e ACEGE