Qui. Abr 18th, 2024

ROSTO DE MISERICÓRDIA

ARMANDA COUTO NOGUEIRA

Pe. Georgino Rocha

Armanda Couto Nogueira (no texto designada por Armanda) nasce em Veiros, Estarreja, a 2 de Março de 1929, no seio de uma família arreigadamente cristã. O pai é moliceiro de profissão e a mãe doméstica, e marcam profundamente a formação da sua filha. O ambiente da ria e as lides do campo, as orações do lar e as devoções populares, as práticas religiosas e as festas da paróquia, penetram e habitam no seu coração, como seiva revigorante e fonte de irradiação, moldam o seu jeito de estar na vida e de reagir ao que vai sucedendo. A evolução social traz-lhe elementos novos que são desafios a acolher e oportunidades a aproveitar. Vem a falecer, após doença prolongada, no dia 20 de Setembro de 2017. Tem uma vida longa que a faz ser testemunha e, por vezes, protagonista de factos relevantes, de enorme alcance histórico.

A diocese de Aveiro vem a ser restaurada, em 1938, e integra a paróquia de São Bartolomeu de Veiros, até aí pertencente à diocese do Porto. O arcebispo Lima Vidal introduz progressivamente normas disciplinares adequadas à nova situação e geradoras da unidade, pois havia paróquias procedentes do Porto, de Viseu e de Coimbra. Promove iniciativas de vulto como o Sínodo diocesano, os Congressos Arciprestais Eucarísticos (também em Estarreja), a visita da Imagem de Nossa Senhora de Fátima. A sociedade civil vive uma fase de progressiva normalização, iniciada com a revolução de 1926 e consolidada pela implantação do Estado Novo, onde impera a figura de Oliveira Salazar. Outros factos acontecem e repercutem-se por todo o país, proporcionando um clima social propício ao desenvolvimento na região de Estarreja. A nível da educação/escola, da indústria, da agricultura e de trabalhos na ria, do apostolado paroquial e da formação cristã.

Armanda vai escrevendo as páginas do livro da sua vida ao ritmo do tempo onde, de forma surpreendente, surgem por vezes factos marcantes que indicam rumos novos e abrem horizontes de esperança. Vamos registar alguns, integrando nesta memória dados preciosos que Victor Bandeira me proporcionou e outras fontes a que tive fácil acesso.

Habitat natural

Veiros situa-se numa zona rural e ribeirinha. Ao longo dos séculos e conhecida, sobretudo, pelas suas esteiras de bunho, pelo seu linho, pelas suas festas e romarias, pela apanha do moliço, pelo mercado de vários géneros (que se realizava em frente à Igreja Matriz), mas principalmente pela sua cebola.

O campo e a ria abraçam-se no coração dos seus habitantes. A sua beleza natural aliada à bondade da população desperta a atenção de pessoas que demandam paisagens novas, exóticas, cheias de luz e cor, de sol e maresia, de encanto e poesia, da suavidade do clima e da atracção da ria na leveza da sua ondulação e na exuberância do seu habitat.

Como “botão de mostra”, valha a apresentação «Percurso das Ribeiras de Veiros» tirada do portal da Bioria:Com o início na Ribeira Nova, este percurso passa pelas várias Ribeiras de Veiros (Nova, Veiros, Moitela, Tralhinha e Moita), terminando no histórico Esteiro de Estarreja que foi no século passado o segundo maior porto de Sal da Ria de Aveiro. Ao longo dos cerca de 7 km atravessa canais, valas e esteiros, sapais, juncais e caniçais, campos agrícolas, áreas com pequenos bosques que brotam na proximidade das marinhas, pertencentes a um ecossistema que alberga espécies únicas de fauna e flora.

A dar-lhe um tom humano de nova dimensão, está a religiosidade profunda da população vivida no santuário dos lares, festejada nas capelas sob a invocação dos Santos protectores e celebrada na igreja paroquial de São Bartolomeu. Religiosidade que tem os seus avanços e recuos, mas sempre com fortes raízes na piedade popular, realidade em permanente desenvolvimento, cujo protagonista é o Espírito Santo (Papa Francisco, A Alegria do Evangelho, nº 122).

Vida ao serviço do próximo

Solteira por opção, torna-se fecunda no serviço ao próximo, na doação generosa e ajuda constante às pessoas necessitadas, sobretudo a crianças e jovens. Esta relação de ajuda não é de substituição, mas de educação de atitudes e promoção de capacidades.

Começa a trabalhar na Escola das Cabeças por volta de 1965 e reforma-se quando atinge o limite de idade em 1999, aos 70 anos. Sempre como contínua que cuida do serviço auxiliar, mas sobretudo das crianças que trata como autêntica mãe e aos pais que lhe demandam alguma informação. Quantas gerações lhe “passaram” pelas mãos, aqui e na catequese paroquial ou familiar, pois muitas vezes prolongava em sua casa a relação educativa com elas.

Era realmente uma “mestra”, afirma Victor Bandeira. “Muitas coisas novas que vinham para Veiros, era ela que as trazia por conhecer tanta gente em tantos lugares da diocese, promovendo cursos de puericultura para as jovens de Veiros, cursos de culinária, costura, etc. Promovia a formação humana a muitos níveis”. E evangelizava a fé dos “simples” (D. António Marto, bispo de Leiria-Fátima).

Entrega por inteiro à Igreja

Na paróquia e na Acção Católica ou em outros movimentos de apostolado, na Igreja diocesana e nas grandes iniciativas pastorais, a Armanda marca presença qualificada e dá o seu valioso contributo. “Trabalhou de perto junto dos vários bispos, e eles tratavam-na pelo nome, eles conheciam-na bem, e atribuíram-lhe grandes serviços na Igreja Diocesana”, refere o testemunho de Victor Bandeira.

Um dos serviços é de animadora dos grupos sinodais na paróquia. De facto, por convocação de D. António Marcelino, realiza-se em toda a diocese o Sínodo da Renovação, nos anos de 1990-1995 e, no quinquénio seguinte, promove-se a implementação das Decisões tomadas a fim de serem vida nas comunidades eclesiais. A organização da preparação alicerçava-se em grupos (com milhares de elementos, um pouco por todas as paróquias e movimentos) e, depois, em assembleias onde participavam centenas que debatem os assuntos previamente indicados. Aqui está a Armanda no seu serviço discreto, mas eficaz.

Doada à vida da paróquia como motor de ignição

A paróquia é o espaço eclesial mais próximo às pessoas. Os sinos da sua igreja marcam o ritmo do tempo, fazendo ecoar o horário ao longo do dia e espalhar a notícia do que vai acontecendo: de alegria e festa, de tristeza e luto, de tragédias e calamidades. Possuem um secreto encanto que ressoa no coração de cada habitante e constitui um bom auxiliar da memória.

Armanda é, no seu tempo, a chave de ignição do motor que coloca a paróquia a funcionar, diz o Victor em tom comovido na celebração do funeral. E continua afirmando: Dirigiu a catequese ao longo de décadas, foi catequista de avós, pais, filhos e netos; por ela passaram várias gerações e todos a recordam! (…) . Ensinou através do seu exemplo, do seu testemunho de vida! Tudo dava, sem receber nada em troca! (…) Construía o presépio da igreja com primor, inovando sempre a cada ano que passava. (…) Foi Ministra Extraordinária da Comunhão, visitadora de doentes; e o braço direito do Padre “Nédio” (assim era chamado o P. António Afonso e Cunha), pároco de Veiros ao longo de vários anos, de quem tinha toda a confiança para poder servir os irmãos na Fé, na Esperança e na Caridade.

A sua acção mais eficaz era, sem dúvida, o testemunho de humanidade, a força das convicções, a arte de ensinar a fazer, a paciência para acompanhar quem vai crescendo na escola da vida. O bispo de Aveiro, D. António Moiteiro, afirma na carta pastoral «Dai-lhes vós mesmos de comer (Mc 6, 37)»: “A esperança manifesta-se praticamente nas virtudes da paciência, que não esmorece no bem nem sequer diante de um aparente insucesso, e da humildade, que aceita o mistério de Deus e confia n’Ele mesmo no meio da escuridão”. É a carta orientadora do ano apostólico 2017/2018. Feliz coincidência e belo resumo, pode dizer-se, da vida e acção de Armanda Nogueira.

Personalidade firme, esclarecida e consciente

O perfil de Armanda comporta traços que o P. Tomás Afonso, actual pároco, apresenta em afirmações precisas. Transcrevo as mais relevantes. Toda a sua existência foi viver para os outros, não distinguindo idades, nem cores, nem idiomas, pois todos eram seres humanos revestidos de respeito e dignidade; as virtudes bem notórias nela eram a humildade, uma fé firme, um grande amor a Deus e ao próximo, uma verdadeira serva sempre disponível e pronta para servir.

Dava do seu pouco pão aos famintos, em especial às crianças e aos que lhe batiam à porta… Era uma alma abnegada, seguindo o exemplo de S. Geraldo, patrono do seu lugar, sendo responsável pelo abrir e fechar portas da sua capela, pelo asseio da mesma e da igreja paroquial, como cuidar das vestes litúrgicas e da preparação das festas; procurou viver as bem-aventuranças e praticar as obras de misericórdia. Fez sua a certeza profunda de S. Paulo: “Nenhum de nós vive para si mesmo… Quer vivamos ou morramos, pertencemos ao Senhor” (Rom 14, 7-8).

E a misericórdia de Deus brilha radiante em rostos humanos no quotidiano da vida iluminada pela fé pascal.