Sáb. Mar 22nd, 2025
‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | Parceria com a revista ‘Mundo Rural’

Luís Manuel Pereira da Silva*

A nossa viagem – ‘regresso a Ítaca no sonho do Éden’ – é marcada por um novo ‘olhar cruzado’ entre a cultura grega e a marca cristã. São os protagonistas deste novo entrecruzar de olhares a mulher de Lot e o mito de Orfeu e Eurídice.

Em ambas as histórias, somos confrontados com uma maldição: não podeis olhar (para trás). Algo de terrível ocorrerá.

A mulher de Lot transformar-se-á em estátua de sal (Gn 19, 26); Orfeu perderá para sempre a sua amada Eurídice.

Ouvi estas duas histórias sempre muito intrigado.

Nenhuma das duas culturas – a grega ou a judaico-cristã – parece ter uma visão amaldiçoada do passado.

Porquê, então, este aparente repúdio do passado?

E se, afinal, estivermos a ler de forma incompleta as duas cenas?

Não será estranho que o mesmo livro de Génesis[1] continue a cena dizendo-nos que ‘Abraão foi ao lugar onde estivera na presença de Iahweh e olhou para Sodoma, para Gomorra e para toda a Planície, e eis que viu a fumaça subir da terra, como a fumaça de uma fornalha!’ (Gn 19, 27-28)

Como ler esta duplicidade de leituras sobre o ‘olhar’? A mulher de Lot olha e é transformada em estátua de sal; Abraão olha e permanece vivo.

A própria bíblia dá-nos a grelha de interpretação.

Veja-se que o detalhe que faz a diferença será a afirmação de que Abraão vai ao ‘lugar onde estivera na presença de Iahweh’.

O seu olhar já não será o daquele que possui, mas o daquele que contempla.

Ah, parecemos encontrar aqui o ponto para ler ambas as cenas.

O problema não está no facto de o olhar ser voltado para o passado (também Abraão parece olhar para o passado…), mas antes o facto de ser um olhar marcado por uma tentação, uma sedução traiçoeira.

Orfeu olha para trás como quem quer deter, possuir; a mulher de Lot olha para trás, não como quem contempla, mas como quem quer possuir aquele saber que já se anunciara, pela ‘voz’ da serpente, no momento da queda, face à maldição decorrente de comer da árvore que está no meio do jardim: ‘não, não morrereis! Mas Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal’ (Gn 3,5).

A cultura grega e a cultura bíblica parecem aproximar-se, neste ponto, ainda que, logo após esta coincidência, divirjam.

Antes de tomarmos consciência dessa divergência, anotemos, ainda, como a questão do ‘olhar’, do ‘ver’ tem marcada centralidade na Sagrada Escritura[2]: como recordávamos, acima, a serpente fala de que ser como deuses é poder ‘ver’ o bem e o mal, o salmo 135 afirma que ‘os ídolos têm olhos e não veem’ (sl 135,16); O novo testamento recorda, diversas vezes, que a Deus ‘ninguém viu nem pode ver’ (1Tm 6,16 ou 1Jo 4,12). São João antecipa, no prólogo ao seu evangelho, a tensão entre a luz e as trevas, tensão omnipresente neste quarto evangelho. Os autores da entrada ‘ver’ do vocabulário de teologia bíblica recordam que «ver a Deus olhos nos olhos (Is 52,8) é o mais profundo desejo do Antigo Testamento [sendo que] a nostalgia do paraíso que domina toda a bíblica é antes de tudo a consciência de haver perdido o contacto imediato e familiar com Deus» (VTB, 1054), sendo que todas as manifestações de Deus são marcadas pela impossibilidade de ver a Deus, face a face (só se poderá ‘ver’ Deus pelas costas, pois a face não pode ser vista (Ex 33,22s)).

O ‘ver’ é o sentido mais singular de todos. Permite olhar sem ser visto, ver e imaginar, mantém os seres distantes, permanentes na sua identidade. Todos os demais sentidos fundem o sujeito e os objetos (cheirar implica ser invadido pelo odor que entra dentro do sujeito; palpar implica a reciprocidade entre aquele que toca e o que é tocado; degustar implica abrir-se a acolher e sentir nas papilas gustativas; ouvir pode ocorrer sem que o sujeito de tal se aperceba, numa indiferença descomprometida, mas gera no sujeito a impressão de que uma voz lhe ocupa a cabeça…). Só o ver ocorre na independência efetiva entre o sujeito e o objeto. Mas, talvez precisamente por isso o ver seja tão vulnerável à possibilidade de se corromper quando é carregado com o desejo da posse. Ver é sempre permanecer em si (quer no prisma do objeto visto; quer no prisma do sujeito que vê). A tentação está, precisamente, no desvirtuamento desta natureza de alteridade, intrínseca ao ver.

O ‘ver’ de Deus é o da contemplação. O ‘ver’ do homem decaído é o da posse. ‘Então, abriram-se os olhos dos dois e perceberam que estavam nus […]’ (Gn 3,7a).

Hoje, neste século que tudo quer saber para tudo dominar, Orfeu parece querer voltar a virar o olhar, juntando-se à mulher de Lot, sempre que quer saber mais e mais, não para compreender, mas para possuir, para instrumentalizar.

Os gregos constataram a força desta sedução, mas não conseguiram sair dela, caindo na visão trágica que o cristianismo superou e continua a superar. Perante a tragédia, os heróis gregos cegam-se (Édipo), bebem da água do rio Letes (um dos rios do Hades, de cujas águas os que as bebiam recebiam apenas esquecimento. Aliás, uma das palavras gregas para ‘verdade’, é ‘alêtheia’, o que, literalmente, quer dizer ‘não esquecimento’, numa alusão ao reconhecimento de que ser verdadeiro é guardar memória do compromisso.), ou morrem de sede (como Tântalo) perante a visão das águas que se esquivam e afastam. Ver é uma maldição trágica para os gregos.

A superação desta ‘maldição’ está na afirmação de que ‘quem me vê, vê o Pai’; não é um ver de quem se apropria, mas o de quem olha com amor e constrói o amor e no amor.

É o olhar de Simeão que, na criança frágil, porque ‘os seus olhos viram a salvação’, reconhece que já pode partir (Lc 2,30). Ou o olhar do segundo Tomé que, superando o primeiro, para quem se não vir, não acreditará, perante a realidade para que se abriram os seus olhos, proclama ‘Meu Senhor e Meu Deus’, a que se somam as palavras de Jesus, aqui tão loquazes para a nossa reflexão: «porque viste, creste. Felizes os que não viram e creram.» (Jo20, 27-29).

Não estamos, aqui, perante o elogio da cegueira. Antes, perante a apologia do olhar que respeita o que é ‘ver’: contemplar, assegurando a alteridade do sujeito e daquele que é ‘visto’. Lot e Orfeu (curiosamente, como recorda Kurt Pahlen, na sua história da música, a obra de Cláudio Monteverdi dedicada a ‘Orfeo’ é a primeira ópera da história. A arte musical sob a égide do desafio da busca do verdadeiro olhar: o que contempla!) são, aqui, epónimos do Homem que pretende ver para possuir. O homem da Razão instrumental, que a modernidade arvorou em modelo de toda a humanidade.

Mas a palavra cristã expressa-se, como Palavra tornada visível, o ‘Verbo Incarnado’, que se manifesta na Palavra dita nas próprias Escrituras e que, de forma simbólica, se fecha naquele livro que significa ‘revelação’ (‘Apocalipse’, o que evidencia não um possuir, mas um acolher; algo que se revela não é exigido; nasce da iniciativa daquele que quer revelar…) e que, com eloquência, conclui dizendo que ‘nunca mais haverá maldições. Nele estará o trono de Deus e do Cordeiro, e seus servos lhe prestarão culto, verão Sua face, e seu nome estará sobre suas frontes. Já não haverá noite; ninguém mais precisará da luz da lâmpada, nem da luz do sol, porque o Senhor Deus brilhará sobre eles e eles reinarão pelos séculos dos séculos.’ (Ap 22, 3-5).

Ver já não será maldição. Será a natureza do Homem feliz: porque ver já não estará sob a tentação de possuir, mas liberto de toda a sedução de aprisionar. Será um eterno adorar a Deus: vê-l’O como é porque só o ver faz permanecer em si (e em Si) todas as coisas.


[1] Citarei as passagens bíblicas a partir da edição da Bíblia de Jerusalém, segundo edição da Paulus, 1994.

[2] Seguirei, aqui, de perto, as ideias recolhidas no vocabulário de teologia bíblica (VTB), dirigido por X. Léon-Dufour, editado pela Vozes, em 20027, 1054-1057.


Imagem: Orpheus and Eurydice | Carl Goos [1797-1855] – Statens Museum for Kunst


*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura e autor de ‘Bem-nascido… Mal-nascido… Do ‘filho perfeito” ao filho humano’
Artigo originalmente publicado em www.teologicus.blogspot.com