Sex. Abr 19th, 2024
‘Duas Asas’ – rubrica dedicada ao pensamento e escritos de Edith Stein
(Parceria com o Carmelo de Cristo Redentor – Aveiro)

CIÊNCIA DA CRUZ

Javier Sancho*

a) Edite Stein e João da Cruz

Sabemos com certeza que o encontro de Edite Stein com Teresa de Jesus se deu no mês de Junho de 1921. Ao contrário, em relação a João da Cruz os dados não são tão precisos. Contudo, podemos seguir uma linha descendente que nos vai levar a um possível encontro com o Doutor místico nos primeiros anos do seu catolicismo, por 1927. Embora, como constataremos, parece que não fez uma leitura em profundidade do Santo senão pelos anos 30, possivelmente durante a sua preparação para a tomada de hábito (1934).

Como dado mais do que evidente temos a sua última obra A Ciência da Cruz (CC), escrita nos últimos anos da sua vida (1941-1942). No seu escrito imediatamente anterior sobre o Pseudo-Dionísio, Caminhos do conhecimento de Deus, manifesta já uma clara influência sanjoanina. Na sua obra Ser finito e ser eterno (1936) transparece claramente a influência sanjoanina, ao qual cita explicitamente (cf SF 407-408).

Pouco antes, em Abril de 1935, mergulhava na doutrina do Santo como preparação para a sua profissão, tal como faria um ano antes para a sua tomada de hábito (1934) (cf. Ct 1121). Em três dos seus escritos preparados entre 1934-1935 fazia também referências explícitas a João da Cruz: Amor com Amor. Vida e obra de Santa Teresa de Jesus; Teresa de Jesus: Uma mestra na educação e na formação; e Sobre  a história e o espírito do Carmelo. O seu escrito para a festa de São João da Cruz – Amor à Cruz – parece ser do ano de 1933. Entre os escritos que se conservam de Edite é a primeira vez que escreve directamente sobre um tema da mística sanjoanina. Nalgumas das suas conferências dos anos 30 nota-se também certa influência sanjoanina (Cf. OC IV, pp. 202. 240).

Podemos situar a aproximação de Edite a João da Cruz a partir do ano de 1927. Tomamos a notícia de uma carta escrita ao filósofo Roman Ingarden, onde, ao falar sobre a experiência religiosa, coloca a João da Cruz e a Teresa de Jesus como «homines religiosi» (cf. Ct 802).

 

b) Escrevendo a «Ciência da Cruz»

A Madre Ambrósia Antónia Engelmann, prioresa de Echt desde Setembro de 1940, animará a Edite para realizar um estudo sobre São João da Cruz (Ct 1359) para a celebração do IV Centenário do seu nascimento (1542-1942).

O tempo à sua disposição para realizar esta obra é relativamente breve. O encargo é feito no fim de 1940 e a celebração do Centenário é em 1942. Dispõe apenas de dois anos. Os primeiro meses são de busca de material necessário e, ao mesmo tempo, de penetração nos textos do Santo para fazer deles objecto de meditação.

Um dado interessante é que o seu desejo de fazer um bom trabalho leva-a a ler o texto sanjoanino na língua original, dedicando-se a um estudo mais profundo da mesma para chegar a uma melhor compreensão da linguagem sanjoanina. Vimos já como fez o mesmo com Tomás de Aquino e o Pseudo Areopagita.

Podemos afirmar que o período de preparação e de recolha do material vai desde os fins de 1940 até Outubro de 1941. Começa a escrever a partir de Novembro de 1941, nove meses antes de que a Gestapo a tirar do convento para a levar para o campo de concentração de Auschwitz. No início do Verão de 1942 já tinha dado todo o texto a Ruth Kantorowich para o escrever à máquina.

 

c) Estrutura e conteúdo

A Ciência da Cruz (cujo título original escrito por Edite era: «A Ciência da Cruz. Ao doutor da mística e Pai dos carmelitas, João da Cruz, no 400 aniversário do seu nascimento»: Kreuzeswissenschaft. Dem Kirchenlehrer der Mystik und Vater der Karmeliten Johannes vom Kreuz zum 400. Jahrestagen seiner Geburt), é uma das obras steinianas mais conhecidas e difundidas. Pensada originalmente para ser publicada em 1942 por ocasião da celebração do IV centenário do nascimento de São João da Cruz, contudo, não verá a luz senão em 1950, como 1º volume da ESW.

Edite pretende fundamentalmente fazer um estudo unitário e global da doutrina sanjoanina, tanto do ponto de vista biográfico, como doutrinal e experiencial. Esta obra. Contrariamente a quanto se veio afirmando, é uma obra completa e concluída. Não apenas pela sua estrutura e conteúdo, mas porque o estudo do manuscrito e dos outros documentos, demonstram contundentemente que estava acabada (cf. OC V, 185 ss).

A CC é antes de tudo uma obra de espiritualidade carmelita. A intenção de Edite ao escrevê-la deve ser considerada como algo fundamental. Deixa-o bem claro no prólogo da sua obra: «Nas páginas seguintes será feita uma tentativa de compreender a João da Cruz na unidade da sua essência, tal como se depreende da sua vida e obras, de um ponto de vista que possibilite perceber esta unidade  num só olhar. Por isso, não se oferecerá nenhuma descrição da sua vida e nenhuma exposição universal interpretativa da doutrina» (OC V, 201).

Esta «unidade da sua essência» vai descobri-la no sinal redentor da Cruz. A cruz como ciência que é vida. A cruz como «forma íntima». A cruz como caminho místico de transformação em Cristo, como participação no mistério da sua morte e ressurreição. Não esqueçamos tão-pouco o fim indirecto que se propõe: «o que autora julga ter compreendido das leis do ser e da vida espiritual ao longo dos esforços da sua vida» (ib. 202). Isto quer dizer, que em certo momento da obra, Edite vai procurar fazer-nos ver como o resultado de uma compreensão «científica» da vida espiritual do ser humano, coincide com a experiência do Místico, ou melhor dito, encontra confirmação e esclarecimento nele.

A obra está dividida em três partes que convergem para alcançar o objectivo da autora:

Na primeira parte, titulada «Mensagem da cruz», propõe-se descobrir quais são os caminhos ou meios através dos quais a mensagem da cruz se foi  impregnando na vida de João.

Na segunda parte, «a doutrina da cruz»,  de longe a mais extensa e central, propõe-se fazer uma leitura e interpretação de toda a obra sanjoanina desde uma chave que a unifique: a cruz vista como ciência, ou dito de outro modo, a configuração com o mistério de Cristo em todas as suas fases. Nesta parte, além de analisar todos os escritos maiores do Santo, apresenta-os numa unidade ascendente, seleccionando aqueles textos e temas que aparecem essenciais no caminho do seguimento.

A terceira e última parte, «seguimento da cruz», é a conclusão e a demonstração de toda a doutrina: como a vida de João segue os mesmos parâmetros estabelecidos na sua doutrina. Não se trata de uma fria e bela teoria, mas de uma prática existencial configuradora: a sua vida e a sua morte são a prova disso.

*Javier Sancho. 100 Fichas sobre Edith Stein. Edições Carmelo, Avessadas, 2008. Pp. 158-159.


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