Papa Francisco: o seu legado | Rubrica dedicada à reflexão sobre o legado do Pontificado do Papa Francisco
Pe. Querubim Silva
(Pároco de Angeja e Frossos, ex-diretor do Correio do Vouga e ex-professor no ISET)
A figura do Papa Francisco desde o início me cativou. A simplicidade das suas vestes na primeira aparição para saudar a multidão expectante na Praça de S. Pedro, a humildade de quem se apresenta como o Bispo de Roma que pede a oração e bênção do povo, a declaração “vamos caminhar juntos”, deixaram claro o seu programa de vida, que haveria de tornar-se visível nos seus gestos, nas suas palavras, ao longo dos 12 anos do seu pontificado.
Coisas tão simples, como a recusa de usar uma cruz peitoral de ouro, o anel do pescador de metal precioso, a dispensa dos nobres sapatos vermelhos em favor dos velhos sapatos pretos, o uso de viatura simples em detrimento de limusina ou carros de alta gama, a dispensa de viver num ‘palácio’ para viver entre funcionários e hóspedes de Santa Marta, a preferência por mitras singelas… tudo faria jus ao nome escolhido, Francisco. A sobriedade que propôs com firmeza, no Vaticano e diretamente a alguns ‘dignitários’ eclesiásticos, não deixaram dúvidas.
A sua proximidade, o seu coração sensível e misericordioso, preferindo o abraço aos pobres, a visita aos doentes e aos presos, as viagens apostólicas às periferias – Lampedusa e Mongólia são os símbolos mais fortes, o anseio, a angústia e as iniciativas pela paz, o esforços de diálogo não apenas ecuménico mas interreligioso e mesmo com os não crentes…, deram crédito e crescente força às impressões iniciais.
Deu ouvidos ao dito de S. Gregório Magno: “Se da verdade resultar escândalo, suporte-se o escândalo, mas não se abandone a verdade”. De facto, os escândalos dos abusos sexuais e da corrupção económico-financeira esmagaram-lhe o coração, mas não lhe toldaram o espírito. E levou por diante a humildade de pedir perdão às vítimas e a coragem de clamar punição para os faltosos.
Sem dúvida que o chamamento de toda a Igreja à redescoberta da sua identidade original, pela escuta de todos à Palavra e de todos a todos, abriu um novo rumo ao modo de vida da Igreja, único capaz de a tornar credível nos nossos dias: retomar a força do sacramento original, o Batismo, recolocar funções e ministérios não como honras mas como serviços, o que exige ‘caminhar juntos’, desenhando a unidade pela diversidade corresponsável. Também nesse sentido, descodificou a linguagem teológica e magisterial hermética em linguagem aberta, acessível a todos e ciente da inesgotabilidade que é a plenitude de Jesus Cristo.
Fomos ordenados presbíteros no mesmo mês e ano, há 55 anos; somos nascidos no mesmo mês, com dez anos e uns dias de diferença. Talvez essas circunstâncias, e o facto de estar acompanhado de uma catequista com 65 anos de serviço, me tenham dado a felicidade de com ele trocar pessoalmente duas palavras e ouvir o seu obrigado, de um rosto sofrido mas sempre sorridente, no passado dia 5 de fevereiro, na penúltima audiência geral em que esteve presente.
Questionado sobre a sua decisão de ser sepultado fora do Vaticano, respondeu com lucidez: “Aqui é o meu lugar de serviço; não é a minha morada definitiva”. Coerente: terminado o seu serviço como Papa, o lugar de Bispo de Roma não tem que ser no Vaticano. Aliás, a sua Sé é S. João de Latrão. Mas a ligação íntima a Maria justifica perfeitamente que tenha optado por Santa Maria Maior – Nossa Senhora das Neves.
Continuamos a rezar ti, Papa Francisco. Vela por nós junto do Pai, tu que deixaste de nos ver com os olhos do corpo, mas nos vês agora com os olhos de Deus!
Obrigado pela tua vida, pelo teu ministério, querido Papa Francisco, Bispo de Roma!