Pe. Georgino Rocha
O nascimento de Jesus suscita um dinamismo extraordinário que Lucas narra de forma sóbria e discreta. Maria e José aconchegam o Menino e vêem realizadas as promessas feitas há meses pelo enviado de Deus. Contemplam-no, mais com o coração do que com os olhos, e deixam que seja o silêncio a falar. Acolhem quem O visita e ouvem quanto se diz a respeito do recém-nascido. Lc 2, 1-20.
Os pastores acorrem apressados e expectantes. Querem confirmar o que lhes havia sido anunciado. Os magos, despertos e orientados na sua curiosidade, põem-se a caminho e, errantes, vagueiam até chegar ao local do encontro. Herodes e os seus conselheiros reúnem de emergência e, temendo o pior, armam ciladas a quem os consulta e procuram eliminar a presumida ameaça ao poder. O Céu une-se à terra em admirável exultação festiva e maravilhosa coincidência.
São Lucas não está a fazer história com esta narração. Escrevendo «o Evangelho da Infância», depois de ocorrida a ressurreição de Jesus, vê o nascimento à luz da Páscoa e antecipa para os momentos iniciais a perspectiva do que virá a acontecer mais tarde. Elabora um texto, sobretudo, teológico que tem a força do acontecimento, o dinamismo da acção e a densidade do símbolo.
O símbolo faz-nos captar a verdade de que é portador: Deus faz-se ser humano, na condição mais frágil da existência, confiando-se plenamente aos cuidados de uma família. Vem ensinar, pelo exemplo e pela palavra, o que é comum a todas as pessoas: a dignidade humana, o valor da vida, a importância da relação confiante e solidária, a esperança do futuro que chega em cada gesto de amor benevolente, o alcance de uma plenitude a que todos estamos chamados e se vai prosseguindo gradualmente, a certeza de que o tempo comporta nas suas entranhas sementes de eternidade, a beleza do Céu que beija a terra e lhe garante uma perspectiva de Infinito.
E os leitores que conseguirem penetrar no seu simbolismo, familiarizar-se com os sentimentos de Maria e de José, “apoderar-se” do Menino Jesus e de quanto habita o seu coração?
É indescritível a riqueza do símbolo natalício. Protagonizado pelo Menino Jesus – a face humana do nosso Deus. Configurado no episódio de Belém e nas suas várias encenações. Pressentido pelos pastores e pelos magos que nos deixam preciosos, ainda que breves, relatos a que Lucas dá forma literária. Temido por Herodes. Plasmado na atitude de Maria e de José. Vivido gozosamente por Deus que todo se compraz na pessoa do seu Filho.
Realmente, está ali ao alcance dos nossos sentidos a imagem do Deus Invisível que «armou a sua tenda» entre nós; está ali, feito ser humano, Aquele que é Deus e vem estabelecer uma parceria de aliança com a humanidade; está ali, o Messias ansiado desde sempre, após a criação do mundo, e aguardado em jubilosa esperança por todos quantos de algum modo vivem o núcleo da sua mensagem: o amor feito serviço, o amor expresso culturalmente nos valores fundamentais à dignidade de ser humano.
A fé cristã – afirma Bento XVI – leva-nos a proclamar: «Deus é tão grande que pode fazer-se pequeno. Deus é tão potente que pode fazer-se inerme e vir ao nosso encontro como criança indefesa, a fim de podermos amá-lo. É tão bom que pode renunciar ao seu esplendor divino e descer a um estábulo para podermos encontrá-lo e, deste modo, a sua bondade nos toque, nos seja comunicada e continue actuando por nosso intermédio».
A expressão original do símbolo vem sendo revestida ao longo da história de várias formas que pretendem sublinhar o que se valora mais nessa época. O povo simples antecipou-se aos grandes artistas no jeito de cantar e representar a maravilha do Natal. Mas a arte, em todos os seus estilos, procura também dizer o indizível e encontrar formas que facilitem o acesso ao grande Mistério: melodias admiráveis, textospoéticos e narrativas literárias, composições musicais, obras artísticas em estilos amaneirados ou com uma sobriedade espantosa,
deixando em realce o Menino e sua Mãe; enfim nada a que «o engenho humano» possa lançar mão fica de fora neste hino universal da criação e das criaturas perante o seu Senhor que vem ser um de nós para nos elevar até Ele.
A cultura hegemónica actual tende a valorizar outras roupagens do Natal e a provocar atitudes humanas mais agitadas. De há uns tempos a esta parte, a sociedade civil por meio das suas múltiplas associações marca o estilo das festas natalícias. A comunicação social, as agências publicitárias e os comentadores avençados pretendem criar e imprimir o ritmo e exibir formas sedutoras que preencham o vazio de tantas vidas e satisfaçam, do melhor modo, os anseios legítimos do coração humano.
E surgem figurinos de toda a espécie que coexistem com as formas mais genuínas da celebração natalícia. E tomam-se as decisões mais bizarras, chegando a proibir a celebração do Natal, a propósito do respeito devido a quem não é cristão – ainda que seja apenas um ou outro cidadão. Deste modo cai-se no caricato, preferindo sacrificar a generalidade da população e anular elementos constitutivos da sua identidade cultural e religiosa. (Esta proibição foi decidia numa escola em Espanha, mas os pais das crianças souberam afirmar-se e levaram à anulação dessa medida).
Estas roupagens podem ocultar o Menino e a sua mensagem, esvaziando por completo a maravilha suprema do Natal. Podem igualmente constituir uma espécie de “área aberta” para a evangelização das aspirações legítimas docoração humano. Podem constituir um repto enorme à capacidade dos cristãos para irem ao essencial e relativizar o acessório.
Evangelizar o Natal é “mergulhar” na gruta de Belém, deixar-se embeber pelo seu mistério, acolher e transmitir os valores da mensagem do Deus Menino, dando-lhes “rosto” humano em todas as partes, sobretudo na organização da sociedade e nas relações sociais.
Fé que não se faz cultura não chega a ser fé cristã. Festa que não ajuda a crescer em humanidade, não é festa cristã.
Imagem de Julia Schwab por Pixabay