Seg. Abr 28th, 2025
(‘Os Sete Dias da Criação’ | Rubrica dedicada ao diálogo entre ciência e religião)
Artigo originalmente publicado na revista ‘Mundo Rural’

Luís Manuel Pereira da Silva*

Uma das maiores dificuldades no estabelecimento do diálogo é a superação dos pré-conceitos para com o outro.

No seu livro ‘construir o inimigo’, Umberto Eco chega a afirmar que ‘ter um inimigo é importante, não apenas para definir a nossa identidade, mas também para arranjarmos um obstáculo em relação ao qual seja medido o nosso sistema de valores, e para mostrar, no afronta-lo, o nosso valor. Portanto, quando o inimigo não existe, há que construí-lo.’ (Umberto Eco, Construir o inimigo e outros escritos ocasionais, p. 12) E acrescenta, ao longo das cerca de trinta páginas que constituem a conferência que abre este livro, que o inimigo é sempre ‘feio’, ‘malcheiroso’, ‘monstruoso’, ‘inferior’, ‘pouco inteligente’, etc.. O inimigo, enfim, nunca é um de nós…

Parece uma inevitabilidade com que, porém, não me identifico. Defendo, desde há muito, que não nos definimos pela competição, mas, antes, pela cooperação que nos permite fazer render os talentos de acordo com uma fórmula matemática de soma criativa: 1+1 não é igual a 2, mas a 3 ou 4 ou 5 ou muito mais.

Quantas vezes, a soma da criatividade de duas pessoas ultrapassa tudo o que ambas puderam algum dia imaginar!

Não tem sido, infelizmente, imune a esta constatação de Eco (que ele pretende que seja intransponível, mas a que tentaremos não nos render…) a história da relação entre a ciência e a religião.

E conta-se entre as mais significativas histórias dessa narrativa de encontros e desencontros, a que nos acompanhará, ao longo desta etapa da nossa reflexão.

Era lugar-comum, no tempo da minha formação, enquanto adolescente e jovem, a afirmação de que a Idade Média acreditara na terra como sendo plana.

Acrescentava-se, inclusive, para fundamentar esta convicção, a ideia de que Cristóvão Colombo não fora financiado pela corte portuguesa por nela vigorar esta ideia, e que fora Fernão de Magalhães a demonstrar a condição esférica da Terra.

A tese tinha tudo para ser credível.

E somava-se às condições de veracidade a nossa acriticidade.

Curiosamente, porém, facilmente se constatará que algo não está bem nesta convicção quase universalmente difundida quando uma rápida visita à obra maior da teologia medieval (importante por repercutir o pensamento consolidado e, também, por ser a obra de maior referência então e posteriormente), a Summa Theologica, de São Tomás de Aquino, nos leva a encontrar, logo na primeira parte, questão 1, artigo 1, na resposta à objeção 2, o seguinte: ‘A diversos modos de conhecer, diversas ciências. Por exemplo, tanto o astrólogo [de acordo com o pensamento medieval, o termo ainda designa o astrónomo] como o físico podem concluir que a terra é redonda. Mas enquanto o astrólogo o deduz por algo abstrato, o físico fá-lo por algo concreto, a matéria.’ [E prossegue, debatendo questões de epistemologia, aliás muito oportunas para a reflexão que aqui nos traz, a saber, a da legitimidade da autonomia das ciências e a da sua complementaridade, na sua especificidade.]

Importa, porém, sublinhar a ‘espontaneidade’ com que o Aquinate se refere ao carácter ‘rotundo’ da terra, deixando pressupor que o assunto era lugar-comum.

Essa conclusão sai confirmada quando nos damos conta de que, como afirmam alguns dos historiadores da ciência que se têm dedicado a este tema (recordo, a título ilustrativo, alguns livros onde esta matéria é abordada: Seb Falk, A Idade Média: a verdadeira idade das luzes; Jorge Buescu, Da falsificação dos euros aos pequenos mundos; Luís Filipe F. R. Thomaz, O drama de Magalhães e a volta ao mundo sem querer, etc.), um dos tratados de astronomia mais estudados, durante a idade média, era o Tratado da Esfera, de João Sacrobosco, publicado em 1231 (segundo Seb Falk, p. 144; Jorge Buescu data-o de 1250). Como recorda Jorge Buescu, outros autores medievais tinham, inclusive, tratados que abordavam, já não apenas a questão da esfericidade da terra, mas a da sua rotação: Jean Buridan (1300-1358) e Nicolau Oresme (1320-1382). Acrescenta Jorge Buescu, no livro com que despertei, no já distante ano de 2003, para esta enorme ‘fake new’, que ‘Roger Bacon (1220-1292) afirmou a esfericidade da terra utilizando os argumentos clássicos (os mastros dos navios, as diferentes constelações visíveis em diferentes partes do mundo, o facto de a vista do cimo de uma montanha ser maior) [e que] o próprio Tratado da Esfera do matemático português Pedro Nunes, publicado em 1537, é uma tradução anotada e comentada do Tratado da Esfera de Sacrobosco.’ (Jorge Buescu, Da falsificação dos euros aos pequenos mundos, p. 171).

Luis Filipe Thomaz pergunta, com graça: ‘se a Terra não fosse redonda, como poderia Colombo, trinta anos antes de Magalhães, intentar descobrir as Índias Orientais navegando para Ocidente? E como poderia o cosmógrafo florentino Paolo del Pozzo Toscanelli (1397-1482) ter sugerido o mesmo a D. Afonso V logo em 1474? E como poderia ter o papa Alexandre VI dividido a Terra em dois hemisférios, atribuindo um a Castela e outro a Portugal, se aquela não fosse esférica? E como se teria podido em Tordesilhas traçar uma linha de pólo a pólo sobre uma superfície plana? Porventura têm pólos os rectângulos?’ (Luís Filipe F. R. Thomaz, O drama de Magalhães e a volta ao mundo sem querer, pp 33-34) Explica, por seu turno, Jorge Buescu que a corte portuguesa não investiu em Colombo, não porque acreditasse na Terra como plano, mas sim porque, pelas suas contas (corretas, enquanto a corte espanhola as tinha erradas), a dimensão da Terra tornava um investimento sem retorno a aposta na chegada à Índia pelo Ocidente. A sorte de Colombo foi ter encontrado, no caminho, a desconhecida América… (cfr. Jorge Buescu, Da falsificação dos euros aos pequenos mundos, pp. 176-177)

Perante isto, é óbvia a pergunta paradoxal: como chegámos aqui? Como pôde tornar-se uma convicção comum uma tal mentira? E, ainda pior: porque continua a fazer-se silêncio sobre tamanha falsidade?

Vê-lo-emos, no próximo passo da nossa reflexão…


Seb Falk, A Idade Média: a verdadeira idade das luzes, Lisboa, Bertrand Editora, 2021.

Umberto Eco, Construir o inimigo e outros escritos ocasionais, Lisboa, Gradiva, 2011.

Jorge Buescu, Da falsificação dos euros aos pequenos mundos, Lisboa, Gradiva, 2003.

Luís Filipe F. R. Thomaz, O drama de Magalhães e a volta ao mundo sem querer, Lisboa, Gradiva, 20192.

  1. Tomás de Aquino, Suma de Teologia, Tomo I (Parte 1), Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 2017.

*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de ‘Bem-nascido… Mal-nascido… Do ‘filho perfeito” ao filho humano’, ‘Ensaios de liberdade’ e de ‘Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg’

Imagem de Ylanite Koppens por Pixabay