Seg. Fev 17th, 2025
(‘Os Sete Dias da Criação’ | Rubrica dedicada ao diálogo entre ciência e religião)
Artigo originalmente publicado na revista ‘Mundo Rural’

Luís Manuel Pereira da Silva*

‘Os sete dias da Criação’ evocam um tempo… (Para Santo Agostinho, não será grande o futuro para os que gastam o tempo a interrogar-se sobre o ‘antes do tempo’. Espero que não me aguarde tal destino por ousar desafiar a conclusão agostiniana…) Mas ouso pensar ‘os sete dias da Criação’, muito mais do que um tempo, como um lugar. O lugar utópico que, recuperando o termo criado por S. Tomás Moro, nos fala de um ‘não-lugar’ (utopia – u+topos – ‘não lugar’), pois sonho-o como uma oportunidade para promover um encontro tantas vezes difícil e – estou convencido! – sustentado em enormes equívocos.

‘Os sete dias da Criação’ querem definir-se como um areópago de diálogo entre a ciência e a religião, entre a religião e a ciência. Não a ciência, bem certo, como a pensavam os pré-modernos, que a entendiam como ‘scientia’, sabedoria e saber sistematizado, de forma dedutiva, mas como, com a modernidade, a passámos a pensar (talvez nos venha a merecer posterior discussão esta matéria, mas, para já, bastemo-nos com o conceito moderno…). E não, também, toda a religião, mas a que, enquanto cristãos, se pensa a si mesma como ‘releitura’ e ‘religação’ assente no pressuposto de que, ‘no princípio era o «lógos»’. Não, por isso, uma religião emocionalmente definida, mas que se faz da profunda ligação à racionalidade, não à maneira racionalista, mas no pressuposto de que o ser humano é racional e relacional. Uma razão, por isso, intrinsecamente definida como ‘relação’. Uma razão marcada pela historicidade e pela encarnação. Não uma razão desencarnada.

Dizia, acima, que muitos dos desencontros entre ciência (à maneira antes descrita) e a religião do Verbo encarnado se sustentam em equívocos que, por razões específicas e concretamente observáveis, se tornaram duráveis e, em alguns casos, ainda vigentes.

Veja-se como continua a ser considerada como válida a convicção de que o cristianismo esteja de costas voltadas para com a ciência. ‘Não tivemos nós a história de Galileu?’ (Que alguns chegam a ‘mandar queimar na fogueira pela Inquisição’, levando à consumação algo que não se pode confirmar pela História…). ‘Ou a história de Darwin e a sua recusa pela Igreja Católica?’ (transferindo para o continente uma discussão que foi verdadeiramente quente, sim, mas em terras de Sua Majestade…). Ou, por fim, ‘não temos a cereja no topo do bolo que é a tese de que o universo começou com um ‘Big Bang’?’, omitindo-se que foi um padre o primeiro a formular a hipótese de o Universo ter começado com uma densa e singular concentração de energia, professor na universidade de Lovaina e amigo de Einstein, Georges Lemaître.

Os equívocos somam-se, de parte a parte, e a estes acrescentam-se, bem certo, também conceções conflituantes. John Haught, um prolífico autor destas matérias (em português, está traduzido um dos mais interessantes sobre estas ‘pontes’, escrito numa linguagem acessível e recomendável para todas as gerações, mas particularmente para as mais jovens: ‘Criação e evolucionismo em 101 perguntas e respostas, Gradiva’) analisa, no seu ‘ciência e fé: uma nova introdução, editora Sal Terrae’, as três mais posições fundamentais sobre este assunto: a do conflito, a do contraste e a da convergência.

Tomarei partido pela terceira destas, ainda que deva sublinhar que, por convergência não deverá entender-se uma qualquer matização do ‘concordismo’, que procura na ciência as confirmações para o que uma leitura literalista dos textos sagrados conclui. Antes, deverá entender-se como a posição que pressupõe estratos na realidade, legíveis diversamente, de acordo com o nível ou estrato em que se está, mas sem que tal signifique a existência de várias verdades, como que revisitando os erros do averroísmo. Antes, a convergência dá como pressuposto que, no que for matéria comum, não poderá haver contradição.

Para tal ser possível, a atitude, de parte a parte, deverá ser a da boa-fé e a da disponibilidade para o autêntico diálogo, pressupondo, sempre, que, para haver diálogo, é necessário verificarem-se duas condições coexistentes: duas identidades (distinção) disponíveis para o encontro (convergência). Sem distinção, há monólogo; sem convergência, há conflito e imposição da verdade ao outro.

A este propósito, evoque-se a fórmula encontrada pela Igreja Católica para assegurar, por um lado, a presença da verdade, mas sem que tal implique a recusa de verdade no caminho percorrido por outras vias. Evocando a ideia da presença de ‘sementes do Verbo’ em outras experiências religiosas e, particularmente, nas comunidades cristãs não católicas, a Constituição Dogmática ‘Lumen Gentium’, no seu número 8, refere que ‘esta Igreja, constituída e organizada neste mundo como sociedade, subsiste na Igreja Católica, governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em união com ele, embora, fora da sua comunidade, se encontrem muitos elementos de santificação e de verdade, os quais, por serem dons pertencentes à Igreja de Cristo, impelem para a unidade católica.’

Esta ideia de que a verdade ‘subsiste na Igreja Católica, embora fora da sua comunidade se encontrem elementos de santificação e de verdade’, assegura, por um lado, que não se redunde num relativismo, mas sem que tal comporte a legitimação de uma qualquer imposição ou, no limite, de uma recusa de acolhimento dos elementos de verdade presentes no outro.

Uma tal abordagem coloca-nos em atitude de genuínos peregrinos da Verdade. Wolfhart Pannenberg, por muitos considerado o mais católico dos teólogos protestantes, ao falar da condição proléptica da realidade, afirmando que, no concreto da História, se antecipam lampejos do sentido definitivo, enuncia, precisamente, esta tensão entre os escolhos do relativismo (ao afirmar a ‘Verdade’ antecipada) e o do objetivismo absolutizante (ao falar da condição proléptica da verdade aqui antecipada…).

Será entre estes Cila e Caríbdis (os dois mostrengos entre os quais teve de passar Ulisses, na sua viagem de regresso a Ítaca) que tentaremos navegar…

 


Bibliografia:

John F. Haught, Ciencia y fe: una nueva introducción, Madrid/Maliaño, Universid Pontificia Comillas/Sal Terrae, 2018.

John F. Haught, Criação e evolucionismo em 101 perguntas e respostas, Lisboa, Gradiva, 2009.

Dominique Lambert, Ciencia y fe en el padre del Big Bang, Georges Lemaître, Madrid/Maliaño, Universid Pontificia Comillas/Sal Terrae, 2015.

Luís M. P. Silva, Teologia, Ciência e Verdade: Fundamentos para uma definição do estatuto científico da Teologia, segundo W. Pannenberg, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 2004.

Ronald L. Numbers (org.), Galileu na prisão e outros mitos sobre ciência e religião, Lisboa, Gradiva, 2012.


*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de ‘Bem-nascido… Mal-nascido… Do ‘filho perfeito” ao filho humano’, ‘Ensaios de liberdade’ e de ‘Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg’

Imagem de Andres Nassar por Pixabay