Dom. Jun 15th, 2025
Mystérios lusitanos | A vinte e três (23) de cada mês, habitamos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra…

Alberto Ferreyra*

– J., já olhaste com atenção para esta linha? Parece um fecho sempre corrido? Como se alguém tivesse decidido unir dois lados do nosso país sem os poder dividir!

– É uma ideia gira, M. Como se o comboio pudesse, a qualquer momento, ser dotado do poder de o abrir ou fechar e dividir, para sempre, as duas partes aqui unidas…

– E o que aconteceria a cada uma das partes? Permaneceria no lugar ou partiria para lugar incerto?

J. e M. divertiam-se a fantasiar, enquanto se aproximavam do destino daquele dia de verão: a Igreja de S. Francisco. O pai ouvia e esboçava um sorriso de satisfação; divertia-o ouvi-los e saber que resistiam à doce sedução de se fecharem no mundo digital. O olhar deles distendia-se pelo horizonte, onde, juntos, corriam e imaginavam, sem nunca saírem do lugar mas sempre dele ausentes.

Tinha-lhes prometido regressar ao Porto, mal começassem as férias de Verão. Visitar a Igreja de São Francisco era intenção já várias vezes adiada. Chegara, porém, o momento.

Fizeram a pé o caminho que os levou de S. Bento à margem do Douro que se vê do sobrevivente braço direito do transepto da Igreja.

O rio corria, lento, como que respeitando a sacralidade daquele. O Douro parecia curvar-se, naquele trecho do seu leito. A beleza do lugar apelava ao respeito. – E se os humanos o não guardam, que o preserve a natureza! – Parecia dizer o rio, para se espraiar, algumas centenas de metros abaixo.

J., M. e o pai detiveram-se, durante longos minutos, no largo passeio em que se movem em corrente contrária, as águas de rio dos homens. Observavam e deleitavam-se a viajar pela memória de que falam a pedras.

Decidiram-se a subir.

M. foi a primeira, saltando, dois a dois, os degraus dos vários lanços.

Ao virar para o último lanço, estacou.

Nos primeiros degraus desse último percurso, uma mulher de lenço à cabeça e profundos olhos verdes, tinha uma placa com um mal-amanhado ‘português’ em que dizia necessitar de ajuda. Outros turistas subiam, com M.

Indiferentes!

M. deixou-se comover.

Sabia, porém, que, como tantas vezes lhe recomendava o pai, havia que ser prudente. O dever cristão de olhar a pessoa exigia, porém, não passar indiferente.

M. olhou, fixamente, aquele olhar, simultaneamente, sereno e firme. De um verde-esmeralda.

– Como se chama?

– Atanásia. – Disse o nome com um ligeiro sotaque de leste, como se a palavra não tivesse acento. – ‘Atanasia’!

– Tem fome? O que posso dar-lhe é um pacote de bolachas que trago para a merenda.

– Metadi… Metadi… Guardi para si, minina… Podi precisar ou outros.

Havia respeito recíproco, naquela generosidade mútua.

– ‘B’igado, minina. Minina boa…

M. aproximou o rosto de Atanásia, segredou-lhe algo ao ouvido, deu-lhe um suave beijo na testa e partiu. Atanásia correspondera com um leve abraço em que mal tocou no seu casaco…

Ao chegar ao cimo das escadas, regressou, com o olhar, àquela pedinte de nome invulgar. O olhar adquirira o brilho de quem deixou de ser invisível…

O pai assistira, do fundo dos degraus. Estava feliz com o que via brotar do coração da filha.

– És um bom coração, M.. Mas tem cuidado, pois as intenções não estão em papel escrito, nem se afixam nas sobrancelhas dos rostos.

– Só quis que sentisse que alguém olhou para ela como pessoa, que deixasse de ser transparente. ‘Esta menina olhou para mim’, pareceu sentir e por isso me chamou ‘Minina boa’. Vi que ficou feliz.

O seu silêncio era de anuência e regozijo interior.

Entraram na Igreja.

Um ‘ah’ invadiu-lhes a alma, pois o silêncio impunha-se, nos lábios.

Inebriava o brilho da talha dourada, que o guia explicara ter ali três fases, do ‘nacional’, ao ‘joanino’, até ao rococó.

– ‘Rococó’ faz pensar que seja um estilo com marca de galo. – gracejou M.

– Pois fica sabendo que, sendo o galo um símbolo francês, nem estás muito longe do significado real, pois rococó é um estilo que deve o seu nome a uma palavra francesa, ‘rocaille’, que quer dizer ‘concha’. É um elemento decorativo sempre presente, neste estilo.

– Estás bem informado, J. Preparaste-te bem.

– Estou encantado, mas confesso-te que curioso por ver as catacumbas… Dizem que há, na sua conceção, marca de Nasoni, o arquiteto da Torre dos clérigos.

A curiosidade de J. rapidamente contagiou M., mas sem a distrair de contemplar, atentamente, a árvore de Jessé ou a perturbadora representação dos mártires de Marrocos, a cuja história tanto deve a mudança de Santo António para a ordem franciscana.

– O guia podia ter-nos deixado espreitar para o sarcófago medieval que está à entrada, à direita. Quem sabe se não víamos algum tesouro?! – Queixou-se M., enquanto desciam as escadas, em direção às catacumbas.

Antes de chegarem ao núcleo das catacumbas, passaram por lápides ainda sem datas, pedidas por irmãos que pretendiam um dia ali ser sepultados.

Avançaram para o espaço onde se encontravam, outrora, os túmulos sobre que se andava, mas que eram, agora, apenas, reminiscências de efetivos últimos lugares de repouso.

-Sabes, M., a ideia de cemitério tem mesmo a ver com dormir… A etimologia, isto é, a origem da palavra ‘cemitério’ alude à ideia de ‘cama’, lugar onde se dorme…

– Ideia curiosa, J. Estás sempre a surpreender-me… Mas o que quererá dizer este ‘N.C.I.’ que tantas vezes aparece?

– ‘Nosso Caro ou Caríssimo Irmão (ou Irmã)’.- Explicou o guia, enquanto M. e J., sempre orientados pelo pai, fotografavam sem parar cada um dos espaços.

– Reparo que muitas das datas são de um período curto…

– Uma peste afetou a população desta cidade, com enormes custos de vidas humanas, também entre os irmãos da ordem terceira.

– Li que o nome de ‘ordem terceira’ vem do facto de a primeira ser a que foi fundada por S. Francisco, para os frades, enquanto a segunda é a que foi fundada por Santa Clara, para as Irmãs Clarissas, sendo a terceira constituída por leigos que se sentiam identificados com a espiritualidade franciscana, mas sem serem frades nem freiras. – Comentou J.

– Muito bem! – Confirmou o guia. – Não vão sem ver as belas esculturas de Teixeira Lopes…

Havia vida naquelas estátuas. Uma mãe com um filho pequeno, nu, de costas, agarrado ao seu pescoço, parecia ter acabado de ser esculpida. Havia como que um latejar de sangue naquela pedra… E o olhar compadecia.

Ah, como M. se compadeceu daquela mãe! Quase lhe apetecia dar-lhe a outra metade de bolachas que lhe sobrara…

Regressaram a casa.

No sofá, enquanto os pais ultimavam o jantar, J. e M. percorreram as centenas de fotos de um dia em cheio. Riam, gargalhavam, comentavam.

Subitamente, um silêncio tomou-os de assalto.

O pai e a mãe estranharam…

– Está tudo bem? – Perguntaram.

O silêncio fê-los ir verificar.

J. e M. estavam brancos, ao olhar para uma das fotos.

Fora captada nas catacumbas, num dos túmulos.

Tinha uma inscrição em que se registava

 

Alberto Ferreyra

N. C. I.

Falecido em 15 de janeiro de 2025

 

Se Alberto Ferreyra tinha sentença de morte para breve, também eles teriam a vida penhorada e de fim previsivelmente determinado.

 

Alberto Ferreyra interrompeu o que estava a escrever.

Não lhe agrada o rumo que o conto está a tomar.

Era sedutora a linha do enredo: criar um mistério em torno de umas catacumbas onde nas fotos se capta o destino de alguém parecia ser fecunda trama para enredo de sucesso.

Mas o imaginário de Ferreyra não era fatalista. Nas suas histórias, o destino construía-se no encontro entre liberdades, entre a liberdade da criação e a liberdade do Criador. Não podia prosseguir com aquela linha. E que seria, afinal, das suas personagens, se um tal destino, à maneira trágica dos gregos, se concretizasse?

 

J. e M. baloiçam as suas pernas sobre o umbral do tempo. Aguardam que o seu criador se decida a retomar o enredo, ansiosos com o desfecho. Percebem as dúvidas de Ferreyra. O rumo daquela narrativa era inquietante e desvirtuava o imaginário de Ferreyra nos seus leitores. As personagens de Ferreyra não são fantoches nas mãos de um destino sem liberdade.

J. e M. olham para o infinito abismo, enquanto esperam…

 

Ferreyra riscou as últimas linhas do que escrevera.

 

No sofá, enquanto os pais ultimavam o jantar, J. e M. percorreram as centenas de fotos de um dia em cheio. Riam, gargalhavam, comentavam.

Subitamente, um silêncio tomou-os de assalto.

O pai e a mãe estranharam…

– Está tudo bem? – Perguntaram.

O silêncio fê-los ir verificar.

J. e M. estavam brancos, ao olhar para uma das fotos.

Fora captada nas catacumbas, num dos túmulos.

Tinha uma inscrição em que se registava:

 

Alberto Ferreyra

N. C. I.

Falecido em 15 de janeiro de 2025

 

 

J. e M. estão, refastelados, no sofá, vendo as fotografias de um dia único, enquanto os pais preparam o jantar. Riem, gracejam, divertem-se a ver as fotos. Lembram Atanásia…

M. ajeita-se, no sofá, quando dá conta de que o seu bolso guarda qualquer coisa. A sua mão retrai-se, ao tocar no que ali se esconde. Volta a tentar. É uma crisálida. Um novelo da qual parece estar prestes a brotar uma bela borboleta.

– Como foi aí parar? – Pergunta J.

– Só pode ter sido Atanásia, quando me deu o abraço.

O pai tinha, entretanto, saído da cozinha, abeirando-se deles. Observava, com perplexidade, aquele momento.

– Disseste ‘Atanásia’, M.? Curioso nome. É de origem grega e significa ‘não-morte’, ‘imortal’… – O pai de M. e J. estudara línguas clássicas, fascinando com as suas explicações os seus sempre curiosos filhos. – Vi que, quando a beijaste, também lhe segredaste alguma coisa.

Disse-lhe que via, nos verdes olhos de esmeralda dela sonhos ainda não realizados. Disse-lhe que os alimentasse.

– Parece, afinal, M., que quem tem maior segredo a concretizar és tu. A crisálida que te deixou é um sinal. A borboleta sempre representou a alma, a imortalidade. Olhaste e viste o que outros deixam escapar, desviando o olhar. Que viagem, esta…

J. e M. estavam perturbados. M. revivia aquele breve com Atanásia, em que o tempo alongara, como se num buraco de verme… E, agora, o desvendar do significado do nome e a descoberta da crisálida deixavam-na atónita…

Continuaram a viagem feita de fotos e mistérios.

A contenção provocada pela surpresa voltara, pouco a pouco a dar lugar a novas gargalhadas e entusiasmos.

Subitamente, porém, criou-se um silêncio ensurdecedor que surpreendeu os pais…

– Está tudo bem? – Perguntou o pai, que logo assomou à porta da cozinha.

A ausência de resposta fê-lo perceber que algo intrigante voltara a acontecer.

Encaminhou-se para os filhos. Tinham parado numa foto do interior das catacumbas. Foto de um dos túmulos.

Nela, havia apenas uma inscrição:

 

Alberto Ferreyra

C.O.F.D.S.O.

 

Ninguém parecia querer quebrar o silêncio, de tão atónitos…

Mas J. arriscou.

– Sabemos que N.C.I. quer dizer ‘Nosso Caríssimo Irmão’, mas o que significará ‘C.O.F.D.S.O.’? – Interrogou.

M. olhava, ainda lívida, para aquela foto.

Como poderia desvendar aquela sigla?

A perplexidade deu lugar à curiosidade.

– Vamos continuar a ver as fotos. Quem sabe se se desvenda o enigma com alguma pista. – Aventou J.

– Tenta ver numa das lápides que ainda não tinham data de falecimento, solicitadas pelos irmãos que queriam vir a ser ali sepultados…

Entre as fotos, a de uma lápide que só registava Is 3,10.

Foram vasculhar…

-‘Feliz o justo, porque terá o bem, comerá o fruto das suas obras.’ Diz a passagem do livro de Isaías. – Constatou J.

– ‘Comerá O Fruto Das Suas Obras’. – Repetiu M., como que a querer interioriza-las, à maneira de um suave rumor, as palavras do profeta.

– É este o verdadeiro destino dos homens: comer o fruto das sementes que lançam. Terás lançado boa semente no coração da Atanásia, M.

– Acho, antes, que foi Atanásia que as deixou no coração de todos nós. – Concluiu o pai.

 

Ferreyra está satisfeito com o desfecho da história. A data da sua morte já não é um destino previamente talhado, mas permanece um futuro a construir.

Uma sombra, porém, assomou ao seu espírito: porque estava o seu nome num dos túmulos das catacumbas? Haveria um outro autor a decidir sobre a sua vida? Aquele que o coloca a falar na terceira pessoa?!…

Intrigado, desligou o computador. Antes do último fulgor da corrente, dali saiu uma borboleta de cor verde que poisou sobre o lado direito do ecrã. Agitou, docemente, as asas e voou pela janela, levada num abraço do vento…

Lu……..

Alberto Ferreyra

16 de janeiro de 2025


 

Imagem de Tumisu por Pixabay

 


*Alberto Ferreyra diz que as suas letras habitam a mente e saem da mão de alguém nascido em terras gaulesas, ainda que afirme, em sussurro, que o seu real nascimento ocorreu nas margens do Antuã, em abril de 2024. É, por isso, um prematuro autor literário, germinado da inspiração que a realidade proporciona quando se tem a companhia, nos livros, de génios como Jorge Luis Borges, Miguel Torga, Gabriel García Marquez ou personagens como Poirot ou Padre Brown.
Na sua escrita, cruzam-se o real e o imaginado, o fictício e o histórico, numa embrenhada teia em que o leitor continua a ler, mesmo já depois de fechado o conto. O real continua a fecundar histórias na mente de quem lê Ferreyra. Cada conto, feito dos mistérios desvelados, aproxima o tempo e distancia o espaço, esticando-o até ao eterno e ao infinito. Ao ler Ferreyra, faz-se ‘silêncio’ (‘mystério’ alude à etimologia grega da palavra, que remete para o ‘fazer silêncio’, ‘emudecer-se’…) para que possam ecoar as palavras, para que possa desenovelar-se o enredo sucintamente desvelado.
J. e M., protagonistas de cada um dos contos, acompanhados, em alguns deles, pelo seu periquito ‘branquinho’, fazem emergir, do real em que se enredam, histórias que, nascendo da imaginação de Ferreyra, permanecem como realidades possíveis, deixando a suspeita de terem mesmo ocorrido.
Se não foi real, Ferreyra o criará, inspirado numa cosmovisão que tanto deve àquela religião que fez do encarnado a condição fundamental do existir.
A vinte e três (23) de cada mês, habitaremos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra…