Mystérios lusitanos | A vinte e três (23) de cada mês, habitamos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra…
(Nos ramos da escrita, repousam, vezes sem conta, as gralhas da distração, ocultas, sob múltiplos disfarces, até que alguém as enxote. Alberto Ferreyra contou com o fino olhar da sua amiga Teresa Correia, detentora do segredo da sua identidade, para afastar ou caçar o grasnar das gralhas. Está-lhe, por isso, muito grato…)
Alberto Ferreyra*
O calor dos primeiros dias de verão convidava a uma viagem de comboio pela costa. J. e M. desafiavam, muitas vezes, o pai a uma viagem suave pela linha que ligava Porto e Aveiro. Tomar aquela linha parecia seguir o traçado de uma divisória entre o ardente interior e o frescor do mar. A linha férrea era como que o interstício entre duas dimensões da realidade, como se ali mesmo se cosesse o mapa, anteriormente separado em duas partes, artificialmente unidas para que dele beneficiassem os humanos, ainda que distraídos pelo correr dos dias.
Divertiam-se a ver quem entrava e quem saía. Distraíam-se, assim, ou – talvez, afinal – assim tomavam conta da realidade, como pastores de um ser que anda tresmalhado.
Faziam aquilo com frequência, quando as férias os levavam às margens do Antuã, a casa dos avós.
J. e M. esperavam, ansiosamente, pelos dias em que corriam o litoral, sobre duas linhas sempre unidas, mas sempre separadas, como irmãos que eles mesmos eram: unidos, mas, muitas vezes, às turras…
– Parecemos nós! – Diziam, entre piadas sobre o que viam e observavam.
Aguardavam pelo comboio.
Hoje, dia vinte e três de junho, o destino era o Porto. Bem sabiam que os haveria de esperar uma multidão. Mas isso seria pelo entardecer. A hora que tinham escolhido ainda arrastava consigo o erguer da alvorada.
Iam pela manhã. Poderiam sair em São Bento, visitar a Sé e terminar, pelo meio-dia, com um belo concerto de órgão que, diariamente, se pode ouvir na Torre dos Clérigos. Almoçariam e voltariam, mal as multidões da folia do São João se começassem a concentrar para a noitada.
Chegaram à estação de Estarreja, eram umas oito e meia.
Com eles, um desajeitado e trôpego homem, estranhamente vestido de palhaço.
Abeiraram-se da máquina automática de bilhetes, com o ‘andante’ nas mãos. Preparavam-se para registar as suas viagens.
O homem vestido de palhaço aproximou-se deles.
Tresandava a bagaço…
– Não precisam de pagar. A CP está a oferecer os bilhetes.
Disfarçadamente, o pai de J. e M. colocou os seus braços sobre os ombros dos dois filhos. Estacou e ficou gelado de susto.
Um homem vestido de palhaço a tresandar a bebida não podia ser fonte segura de informação.
Agradeceu, porém, por educação e virou-se, com os filhos, para a linha…
Como estátuas, os três, o pai e os dois filhos, fixaram o olhar no infinito, enquanto, pelo canto do olho, acompanhavam o bamboleante andar do homem vestido de palhaço.
Sentiram-lhe os passos a descer pela longuíssima escadaria – parecia infinita! – até que o sentiram desaparecer no túnel onde o odor a bagaço se haveria de confundir com o fétido cheiro que sempre inunda os túneis das estações.
Percebendo-o longe, viraram-se de novo para a máquina e acabaram a operação de registo e obliteração dos bilhetes.
O comboio estava prestes a chegar.
Desceram, velozmente, entre o riso e o desconcerto, e passaram para o outro lado da plataforma, na senda da linha que os haveria de levar ao Porto…
O homem vestido de palhaço também parecera escolher o mesmo trajeto. Mas longe uns dos outros… Não havia que denunciar não se ter acolhido uma sugestão aparentemente bondosa.
Entraram, mas à distância de um longo olhar, só revisitado de soslaio.
A viagem iniciou-se.
M. estava que não aguentava. Queria comentar o sucedido.
Cochichava, porém… Não fosse o homem aperceber-se de que era sobre ele que falavam.
Tinham de contar à mãe, quando chegassem a casa. Um palhaço convencido de saber quando é que os comboios são gratuitos. Cada uma!
Nas costas do homem vestido de palhaço, via-se, vindo do fundo da carruagem, um homem que lhes parecia ser o revisor.
Viam-no aproximar-se das pessoas, segredar-lhes alguma coisa ao ouvido e seguir.
Chegou a vez de lhes ser revelado o que segredava.
Aproximou-se do pai de J. e M. e tartamudeou: ‘hoje, véspera de S. João, a CP oferece os bilhetes’.
O olhar do pai de J. deambulou, à velocidade da luz, em busca dos já expectantes olhos do homem vestido de palhaço. Os seus lábios arquearam-se ligeiramente, esboçando um sorriso, colado a um encolher de ombros, como que dizendo: – está na hora de mudar este perfume com cheiro a bagaço.
A viagem prosseguiu.
M. só dizia: – com que então não podemos acreditar num homem vestido de palhaço com cheiro a bagaço. Grande lição, pai! Parece que até de uma má cabeça pode vir grande sentença…
Os manuais de pedagogia tinham-se tornado repentinamente bolorentos…
O que mais lhes haveria de reservar aquela viagem?
Chegaram ao Porto. Primeiro, a Campanhã, depois, S. Bento.
O primeiro destino era a Sé.
Na entrada, havia uma placa de homenagem a um dos organistas desta catedral, recentemente falecido neste mesmo dia 23 de junho. Deixara profunda marca de homem genial, com influência musical profunda na história da cidade do Porto, mas também por terras de Aveiro, onde fundara coros, dirigira outros e fora um reconhecido professor de música. As iniciais do seu nome, A.M., deram pretexto para que M. se enchesse de vaidade, glosando com a ideia de que a sua música lhe seria dedicada.
– Convencida! – Dizia-lhe J. – Achas que o mundo gira à tua volta. Deve ter sido um genial músico, pois percebe-se a marca que aqui deixou. Uma homenagem assim só pode ser dedicada a quem muito deu de si.
– Estás um artista das palavras, J. Quem me dera a mim poder ouvi-lo executar alguma peça com a arte que estes elogios nos fazem supor.
Partiram para a Torre dos Clérigos. A proximidade do meio-dia fizera-os afligirem-se com o escasso tempo de que dispunham.
Entraram na igreja dos clérigos. Para seu espanto, não havia ninguém sentado nos bancos para ouvir o concerto. Entretanto, o relógio dos telemóveis indicava a iminência da hora do concerto. Com precisão alemã, à hora certa, o órgão começou a tocar uma peça que J. e M. prontamente reconheceram, por lhes ser familiar o estudo da música. A ‘Toccata e fuga em ré menor’ de Bach saía de todos os cantos daquela belíssima igreja cuja torre Nasoni fizera sair da sua imaginação e elevar aos céus do Porto.
Durante dez eternos minutos, J., M. e o pai sentiram que terra e céu se uniam como nos interstícios do real onde corre a linha do norte. Estavam ali, mas sentiam-se em todo o lado. A música parecia sair-lhes do mais recôndito lugar da alma.
Quando terminou, abriram os olhos, como que acordando de um delicioso sonho. Abraçaram-se!
Ao saírem, por porta distinta da que os levara ao interior, quase tropeçaram na placa que lhes parecia ser a do anúncio do concerto.
– M. vê onde pões os pés!
M. estava lívida. Na placa, um anúncio: ‘concerto cancelado por doença do organista’.
Em rodapé, duas iniciais: A.M.