Sáb. Mai 24th, 2025
Mystérios lusitanos | A vinte e três (23) de cada mês, habitamos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra…

(Nos ramos da escrita, repousam, vezes sem conta, as gralhas da distração, ocultas, sob múltiplos disfarces, até que alguém as enxote. Alberto Ferreyra contou com o fino olhar da sua amiga Teresa Correia, detentora do segredo da sua identidade, para afastar ou caçar o grasnar das gralhas. Está-lhe, por isso, muito grato…)

Alberto Ferreyra*

O rito do lume novo, no adro da igreja, a entrada na igreja, às escuras, a longa sequência de leituras que percorria a bela história do amor com que Deus conduz a história… Aquela noite era sempre muito desejada, uma noite única. A noite da vigília pascal.
Na escola, o assunto passava ao lado. Poucos eram, já, os colegas que participavam nas celebrações pascais das suas terras. Aquilo parecia-lhes opaco. Mas, como dizia o pai de J. e M. um símbolo é sempre algo que transparece, no visível, uma realidade que se esconde. É preciso, por isso, fazer o esforço de se abri ao simbólico, para que ele não se torne uma coisa opaca.
Naquela noite, porém, a força dos símbolos parecia dispensar a disponibilidade prévia. Era-se invadido pela sua força. Mas era preciso estar lá.
J. e M. estavam de férias de escola, nas terras do Vouga.
A Igreja de Sever, pequena mas bela, criava um adequado cenário para uma celebração cheia de jogo de escuridão-luz, de frio-calor, que fazia daquele um momento único no ano.
Os pais tinham escolhido sentar-se do lado esquerdo da igreja, frente ao púlpito de madeira de múltiplas cores repousado sobre uma figura curvada de olhar fixo.
Logo que se sentaram, ainda a igreja estava escura, com a assembleia de velas na mão, M. ficou extasiada com aquela imagem.
Contrastando com a alegria contagiante com que toda a assembleia saiu daquela celebração noturna, M. permaneceu no lugar.
– Reparaste no mesmo que eu? – disse, um pouco assustada, ao irmão.
– Reparei em quê? Reparei que foi uma celebração belíssima. Isto é tão cheio de símbolos, de cor, de luminosidade e contrastes…
– Não. Não me estou a referir à celebração. Estou a falar desta imagem que sustenta este púlpito. Devo estar ainda tomada pela força desta noite. Pareceu-me que me piscou o olho.
– Tens cada uma, M. A noite elevou-te tão alto que te dotaste de poderes novos.
J. sabia que, quando M. era tomada por uma sensação destas, não descansava enquanto não esclarecia as suas dúvidas.
A noite foi de sobressalto. J. ouviu a M. levantar-se, vezes sem conta. E, claro, ele próprio não pusera olho.
O sol de Sever era madrugador. Parecia ser o primeiro sol do planeta, de tão precocemente se elevar nos céus.
Os pais espantaram-se com tão matutino erguer, e suspeitaram de que novo mistério se avizinhava.
– Podemos ir falar com a ti’ Custodinha? – disseram como que em coro, J. e M., mal beberam o último trago de café com leite.
Ti’ Custodinha era a memória viva daquelas terras. O que já nem os livros conservavam, mantinha-se vivo como recordação atual, na mente daquela bela mulher quase centenária e de lutuosas vestes.
– Ela haveria de saber se M. sonhara…
-Quereis saber do ‘janardo’.
‘Janardo’ era o atlante curvado de que M. não desprendera o olhar, desde que entrara na igreja. Era uma peça do século XVIII, sobre a qual repousava um púlpito. Parecia sustentar, sobre as suas curvadas costas, todo o mal do mundo.
– Já o tentaram vender, ainda o meu Manel era vivo – Manel era o marido que ela perdera, no Ultramar, mas de que guardara luto eterno, pois, – dizia -, um amor é para sempre e não tem substituto.- Mas o povo apercebeu-se e, a tempo, impediu a sua partida destas terras. Com o Janardo cruza-se a história do mundo.
-Bem sabeis que estas terras estão cheias de mistérios. Este é um dos mais bem guardados. Nestes tempos, talvez já só eu o saiba. Conto-vos, mas com a certeza de que apenas o passareis a um ouvido. É segredo que não pode ser passado a dois ouvidos.
Para conhecermos a sua história, temos de recuar até ao início da construção desta igreja. O janardo, na forma com que o vemos, hoje, é do século rico de Portugal, o século XVIII, mas a igreja começa a ser construída na segunda metade do século XVI. A história do homem que janardo esconde é do tempo do início do reinado dos Filipes.
– Filipes? Bem, estamos, então, em início da década de 80 do século XVI. – disse, prontamente, M. – Lembro-me bem. Depois da crise que se gerou na sucessão, por morte do nosso D. Sebastião, Filipe II torna-se o nosso Filipe I, dando início à dinastia filipina.
– É mesmo nessa altura. Mas a história do nosso janardo depende mais de Roma do que de Madrid.
– Ena. Estou cheio de curiosidade. Diga, diga, ti’ Custodinha. – atalhou J.
– Por essa altura, o Papa era Gregório XIII. Decidira constituir uma comissão para resolver os problemas associados ao calendário, pois ainda se estava sob a organização do tempo prevista no calendário juliano. Era preciso resolver questões matemáticas, que exigiam os melhores matemáticos de então. Entre 1577 e 1582, uma equipa que contou com Clavius, Gliglio, e outros reputados matemáticos, astrónomos, encontraram uma solução que deu origem ao que é, hoje, o calendário que seguimos e que tem, precisamente, o nome de ‘calendário gregoriano ou liliano’.
– Ti’ Custodinha, estou suspenso. Não estou a ver onde entra o nosso janardo.
Ti’ Custodinha parou. Susteve o ar, olhou para o horizonte e pousou a mão sobre a de J.
– Verás como o tempo é tão efémero e escorre como água fina entre os dedos… Levo-te, sobre os limites do espaço, ao tempo onde estávamos. Volta, comigo, a Roma.
– O Papa recebeu, ainda em 1581, os resultados da equipa que ele mesmo acompanhara. Mas resistiu ao que os dados apontavam, pois era preciso tomar uma difícil decisão. A aplicação do calendário implicava congelar dez dias do tempo. Tal determinação comportava custos sérios. Como podia um humano eliminar dez dias? Isso era poder de Deus. Não comportaria isso repetir a ousadia de Adão, com os custos de uma nova maldição?
E que maldição seria essa? O Papa reforçou a equipa com teólogos que refletiram sobre o alcance de tamanha determinação.
A discussão foi acesa. Mas ressaltava uma certeza: Deus bom não deixaria, nunca, que as maldições se sobrepusessem à redenção.
E que maldição adviria de ousar interromper o tempo? E que redenção, afinal, adviria?
A maldição parecia clara: o tempo petrificado reduziria a pedra ou a fixidez o mal realizado, mas restava compreender como se operaria a redenção.
Os estudos continuaram. Gregório XIII sabia, no início de 1581, que a decisão de avançar do dia 4 para o dia 15 de outubro do ano da publicação da bula com o novo calendário implicaria que os males realizados nesse mesmo período, no ano anterior, transformariam em pedra ou forma firme e rígida, os que tinham sido violentos, nesse mesmo período. Não havia volta a dar. Mas Deus bom não deixaria o mundo assim.
Não foi, por isso, sem receios, mas confiante na bondade de Deus, que o Papa publicou, em inícios de 1582, a bula ‘inter gravissimas’ que determinava que o primeiro dia do novo calendário seria 15 de outubro desse mesmo ano, sucedendo ao dia 4 de outubro. Curiosamente, porém, sendo bula de 1582, Gregório XIII dá-lhe data de 1581, seguindo uma das possíveis datações seguidas então, mas, certamente, com o desejo de ainda contornar algum resquício do trágico modo de pensar dos gregos. Quem sabe se, deste modo, se contornaria a maldição?
– Que história, Ti’ Custodinha. Estou espantada! Então, e o nosso janardo?
– Por essa altura, decorria a primeira fase da construção da igreja. O homem que é, hoje, o janardo…
– Estranho. O homem que é, hoje, o janardo? Não me diga…
– Sim, já vais perceber. O homem que é, hoje, o janardo, conduzia as obras desta igreja. Mas era um homem pouco dado a compreensões. Era rude, duro. Conta-se que não pagava aos pedreiros que talhavam a pedra, exigindo horas e horas sob o peso da vergasta e do chicote. Quando, em 1582, no dia 15 de outubro, entrou em vigor a bula que estabelecia o novo calendário, o capataz das obras da igreja de Sever desapareceu e não mais foi visto. Dizia-se que decidira pôr termo à vida, com remorso.
Mas, quando, no século XVIII, o entalhador fez o púlpito que aqui repousa, foi surpreendido, na realização da sua obra. Ao escavar a árvore de que retirava as lascas, para construir a sua peça, não precisou de muito, pois prontamente a forma deste atlante emergiu, bem definida. O interior guardara, fixa, a figura já acabada. A maldade do capataz, realizada naquele período petrificado pela decisão pontifícia, enrijecera no interior daquela árvore.
– E assim ficará, para sempre? Não tinham os teólogos dito que Deus não haveria de deixar que a maldição se impusesse à força da salvação?
– E assim é, de facto. É sabido que, na perspetiva cristã, o bem eleva e transfigura o mal. O bem feito por poucos participará da redenção operada por Jesus. Diz, por isso, a lenda que vos conto que o Janardo voltará a erguer-se e tornar-se de carne quando um severense for elevado aos altares. Suspeito, M., que o Janardo viu em ti algo de especial…


 

Imagem de Tumisu por Pixabay

 


*Alberto Ferreyra diz que as suas letras habitam a mente e saem da mão de alguém nascido em terras gaulesas, ainda que afirme, em sussurro, que o seu real nascimento ocorreu nas margens do Antuã, em abril de 2024. É, por isso, um prematuro autor literário, germinado da inspiração que a realidade proporciona quando se tem a companhia, nos livros, de génios como Jorge Luis Borges, Miguel Torga, Gabriel García Marquez ou personagens como Poirot ou Padre Brown.
Na sua escrita, cruzam-se o real e o imaginado, o fictício e o histórico, numa embrenhada teia em que o leitor continua a ler, mesmo já depois de fechado o conto. O real continua a fecundar histórias na mente de quem lê Ferreyra. Cada conto, feito dos mistérios desvelados, aproxima o tempo e distancia o espaço, esticando-o até ao eterno e ao infinito. Ao ler Ferreyra, faz-se ‘silêncio’ (‘mystério’ alude à etimologia grega da palavra, que remete para o ‘fazer silêncio’, ‘emudecer-se’…) para que possam ecoar as palavras, para que possa desenovelar-se o enredo sucintamente desvelado.
J. e M., protagonistas de cada um dos contos, acompanhados, em alguns deles, pelo seu periquito ‘branquinho’, fazem emergir, do real em que se enredam, histórias que, nascendo da imaginação de Ferreyra, permanecem como realidades possíveis, deixando a suspeita de terem mesmo ocorrido.
Se não foi real, Ferreyra o criará, inspirado numa cosmovisão que tanto deve àquela religião que fez do encarnado a condição fundamental do existir.
A vinte e três (23) de cada mês, habitaremos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra…