Mystérios lusitanos | A vinte e três (23) de cada mês, habitamos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra…
(Nos ramos da escrita, repousam, vezes sem conta, as gralhas da distração, ocultas, sob múltiplos disfarces, até que alguém as enxote. Alberto Ferreyra contou com o fino olhar da sua amiga Teresa Correia, detentora do segredo da sua identidade, para afastar ou caçar o grasnar das gralhas. Está-lhe, por isso, muito grato…)
Alberto Ferreyra*
M. deliciava-se a deixar pequenos recados pela casa. Divertia-se, não só a escrevê-los, mas principalmente a espreitar os efeitos em quem os lia.
Hoje, deixara um novo bilhete, na frequentada porta do frigorífico.
J. leu e disse, para o meio da casa, na esperança de que alguém ouvisse:
– ‘Ele já sabe. Não é preciso dizer-lhe!’
M. tinha deixado uma mensagem de gratidão: ‘havíamos de agradecer a Alberto Ferreyra. Sem ele, não passávamos de sombras na negritude do nada.’
– Sendo que estás a ficar uma filósofa de algibeira. ‘Negritude do nada’… Não existiríamos. Ponto!
– Essa de ele já saber e não ser preciso dizer-lhe parece-me de quem tem pouco coração, J. Os humanos bem se sabem criaturas de Deus (alguns!), mas, ah, como Lhe sabe bem sentir que Lhe agradecem a vida! Não tanto por Ele, mas por eles…
– Pois, mas, no nosso caso, não passamos de personagens de histórias. Alberto Ferreyra não precisa de que lhe digamos quanto lhe estamos gratos por nos resgatar das sombras da ausência.
– És um pouco injusto. Sombras ou luzes, somos caminho que se faz pelos rumos da história. E tornamos real o que tinha menos existência na memória do que a ficção. Por isso, agradecer-lhe desperta, neste alguém que, agora, nos lê (- disfarça, que está a olhar para nós, neste momento preciso…) sentimentos genuínos de gratidão. É essa uma das nobres missões da literatura…
– Deixa-te de conversa. Sabes onde nos leva, hoje, a imaginação de Ferreyra?
– Não me é difícil imaginar. Deixou-nos abrir a caixa de mistérios que são as margens do Vouga, como poderia, agora, fechá-la num ápice?!
– Sim, regressamos a Sever do Vouga e ao seu longínquo mosteiro, de que nem os alicerces mais fundos se sabe onde ficam.
– Mosteiro? Talvez melhor fosse falares de ‘mosteiros’.
– Bem sei, bem sei. Havia um em Sever e outro em Rocas.
– Talvez até mais. Muito mais.
– Podes explicar-te?
– Vi, há tempos, que o que é, hoje, o concelho de Sever terá tido mosteiro em Cedrim, em Rocas, em Silva Escura e dois mosteiros em Sever, em momentos distintos.
– Bem. Que história, que história! E nada disso resistiu ao tempo.
– Não é bem assim. Algo ficou. Algo bem mais profundo do que a presença de pedras. Um certo modo de ser…
– Um certo modo de ser? Tens cada uma…
– Já ouviste falar do ‘fraile cem passos’?
– Não ouvi nem acho que ninguém tenha alguma vez ouvido falar.
– Bem. Mais uma do Alberto Ferreyra, queres ver? Quem foi, então, esse ‘fraile cem passos’?
– É uma história muito longa. Tão longa que nos leva aos inícios da nação e ao malfadado mosteiro de Sever. Ali existira, no século X, um primeiro mosteiro dedicado a Santo André e São Cristóvão, mas que os mouros destruíram no início do século XI. A este mosteiro estivera associada a tenebrosa figura de Froila Gonçalves. Nos inícios do século XII, mais propriamente em 1135, surge o abade João Cirita, que fundará o mosteiro de Sever, dedicado a São Tiago e seguindo a regra de São Bento.
– É João Cirita o nosso ‘fraile cem passos’?
– Espera… João Cirita era um homem simples, que parecia ter tanto de altura como de largura. No mosteiro, deram-lhe o título de ‘cem passos’, dado o seu ar molengão. ‘Cem passos’ até seriam exagerados… Talvez fosse a conta de uma semana. O seu percurso reduzia-se ao espaço entre o scriptorium e a quinta que se estendia do mosteiro até ao ribeiro. Aí se passaram os mistérios onde nos leva, agora, a imaginação de Alberto Ferreyra.
De ‘cem passos’ ficaram as memórias de um fundador de mosteiros, pois de Sever haveria de partir para S. João de Tarouca, ironizando a história com o tom jocoso com que pretenderam atribuir-lhe o epíteto. Cem passos haveriam de passar a quinhentos, a mil ou muitos mais.
– Ou ‘a nenhum’! – atalhou M.
– Porque dizes a ‘nenhum’?
M. estava com uma edição do Jornal de Mafra, guardada na última viagem por Sintra e arredores. Em grande destaque, anunciava-se que a correspondência de Claraval trouxera novidades. Entre manuscritos perdidos e, agora, encontrados, aparecera troca de correspondência do abade de Claraval com o abade João Cirita, fundador do Mosteiro de Tarouca.
– Vês? Ninguém se lembra de Sever.
– Espera. Ainda estou a ler. Diz, um pouco abaixo, que a história regista correspondência real entre o Abade de Claraval, em meados da década de 30 do século XII, e o abade Cirita, a quem o abade de Claraval chama ‘sans pieds’.
– ‘Sans pieds’ não é ‘cent pieds’.
– Isto é muito esquisito. Parece que teremos de nos embrenhar nas memórias perdidas para recuperar da bruma do tempo o que nem os registos permitem vislumbrar. É estranho chamarem-lhe ‘sans pieds’ e não ‘cent pieds’. Acho que os arquivos nos estão a tentar dizer alguma coisa.
A M. só lhe ocorria uma solução para perceberem se a intuição com que estavam teria rumo. O pai sempre lhes dissera que, a haver memórias recuperáveis das margens do Vouga, teriam de falar com a ti’ Custodinha, que morava na Lombinha. Era um autêntico arquivo vivo. O que já nem os livros guardavam habitava, ainda, nas suas memórias.
O tempo voou e, com ele, J. e M.
– Ti’ Custodinha, lemos uma notícia que fala de um ‘fraile cem passos’.
– Ai, o ‘sem passos’… (A ti’ Custodinha parecia saber bem de quem se falava…) A gente destas terras é muito generosa e muito deve ao ‘sem passos’.
– Como assim, ti’ Custodinha? Um frade que não saía do seu quadrado, confinado ao scriptorium e a quinta, pode lá ser assim tão marcante!
– Isso é um engano. ‘Cem passos’ era um monge com muitas faces. Quando chegava o luar – ai como eram escuras as noites sem a lua! – um vulto descia do mosteiro e percorria os caminhos de breu. Nas casas mais pobres, a soleira da porta tornava-se mão estendida em que robusto sustento era deixado. Sempre durante a noite, porque longas e tenebrosas são as noites da memória! Enquanto dormiam os miseráveis sobre que se suportam os poderosos do mundo, um generoso coração percorria os atalhos da noite da história. Era ‘Cem passos’, que, nesses momentos, se transfigurava em ‘sem passos’. Num dia em que a noite se abatera sobre as terras do Vouga, ‘Cem passos’ decidira distribuir dos bens do mosteiro pelos mais necessitados das imediações. Quisera fazê-lo sem que se soubesse, pois ‘não saiba a tua esquerda o que faz a tua direita’.
Ao chegar à última casita de Solago, o lugar que, agora, se chama ‘Sóligo’, a porta abriu-se, mal dando tempo para que ‘Cem passos’ se escondesse. Correu, por entre arbustos e vegetação, sobre o chão de lama que as primeiras chuvas de outono tinham criado.
No seu peito, o coração batia, acelerado.
Seria descoberto e, com isto, recebida, já, a sua recompensa, quando só na eternidade a pretendia?
Atrás de si, alguém corria, mas cedo estacou.
– Não vejo ninguém, mãe. Ouvi uns passos, mas não se vê pegada nenhuma. Deixou-nos um cesto com hortaliças e castanhas.
– Volta para casa. Não te quero ao frio.
Seguro de que não fora descoberto, ‘Cem passos’ voltou-se. Estranhara não ter sido desmascarado, mas agora percebia. O chão não guardava qualquer pegada do seu caminhar. Como que a sua bondade fora recompensada, por Deus, com a invisibilidade. Os seus passos tinham-se tornado passos escondidos, ainda que longe fosse chegando a sua ação. Sob a proteção da invisibilidade, multiplicaria, ainda, os seus passos pelas povoações que rodeavam o mosteiro. A sua fama espalhara-se, porém, e por isso dele se guardou, em Claraval, o nome de ‘fraile sans pieds’, frade ‘sem pés’. De dia, parecia ‘cem passos’, mas a noite tornava-o ‘sem passos’, levando longe o bem que habitava o seu coração.
Ti’ Custodinha parecia feliz por ter recuperado a memória daquele singular frade.
– No coração das nossas gentes mora um ‘sem passos’, tantas vezes ‘cem passos’, feito de generosidade e bondade. Também eu, quando miúda, assisti à ação de ‘sem passos’. O vosso bisavô, que bem conheci, perdera um dos seus mais importantes sustentos de então. As famílias viviam de uma vaquinha, um porquito e umas aves. Quando lhes morria a vaquita, da qual recolhiam leite para as crianças, e a carne, que se haveria de salgar, como que se abatia sobre tal família uma tragédia. Isso mesmo aconteceu ao vosso bisavô. A noite foi de choro, mas a aurora trouxe a alegria. No curral onde, na véspera, se estendera, pela morte, a vaca de ‘ovos de ouro’, aparecera, sem deixar rasto de passo generoso, uma pequena vitela.
‘Sem passos’ continuava a percorrer os caminhos do Vouga.
Ainda hoje ali se ouvem os rumores do seu andar…
Alberto Ferreyra,
O autor reconhece ter-se comovido com o gesto de gratidão de M., pois raras são as personagens que se lembram do seu criador.
– Obrigado, M.!