Sáb. Mai 17th, 2025
Mystérios lusitanos | A vinte e três (23) de cada mês, habitamos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra…

(Nos ramos da escrita, repousam, vezes sem conta, as gralhas da distração, ocultas, sob múltiplos disfarces, até que alguém as enxote. Alberto Ferreyra contou com o fino olhar da sua amiga Teresa Correia, detentora do segredo da sua identidade, para afastar ou caçar o grasnar das gralhas. Está-lhe, por isso, muito grato…)

Alberto Ferreyra*

J. e M. (e o branquinho, pousado no ombro de M.) andam entusiasmados com o desejo de regresso à terra do pai. As margens do rio Vouga têm-lhes proporcionado misteriosas aventuras. Aquelas águas inspiram, como sempre ouviram ao pai. As férias grandes são, sempre, um tempo único. O povo voa para o Algarve e deixa-lhes a terra para que a possam contemplar com um olhar de Poirot, mas sem os tiques do detetive belga. Sempre, porém, de ‘células cinzentas’ atentas.
Poirot inspira-os…
O pai segredara-lhes a certeza de que aquelas férias grandes seriam inesquecíveis. Prometera-lhes dar-lhes a conhecer um lugar único. Único, mesmo.
Assegurara-lhes que jamais esqueceriam a terra do lameiro, a terra a que, desde os tempos de um célebre abade Santiago se dizia, de ouvido a ouvido, que era a terra da verdade. O abade Santiago, sabedor da cultura grega, chamara-lhe o ‘lameiro aletes’. O povo achava que seria ‘A Letes’, aludindo a uma qualquer ‘Celeste’ ou ‘Salete’… Os inconformismos populares tudo explicavam quando não sabiam a verdade. Mas ‘Aletes’ explicava-se e o pai garantira-lhes que lhes haveria de contar a verdade.
Era impossível esperar pela chegada. O comboio parecia andar a vinte, mesmo que o registo interior, no topo da carruagem, indicasse duzentos.
De Aveiro, paragem do Alfa, haveriam de seguir, de automotora, até à Sernada e, dali, de autocarro até à estação de Paradela. Era uma viagem deslumbrante.
O pai lembrava-se, ainda, da última viagem de automotora, percorrendo, a dez à hora, a ponte do Poço de Santiago. Hoje, a linha de outrora servia de percurso pedonal. Quantos mistérios escondem aqueles trilhos!
Desta vez, contudo, os mistérios andavam mais adentrados nas povoações.
O destino desta viagem não haveria de ficar-se pela estação de Paradela, agora, transformada num convidativo café de memórias longínquas. O mistério esperava-os na terra do lameiro.
O pai guardava memórias muito vivas daqueles sítios.
No lameiro, a ladear a Cancela, depois descer a íngreme ladeira de Paredes de baixo, o ribeiro que beija o Vouga fazia um pequeno espelho de água, sombrio, mas muito eloquente. Falava. Ah, como falava! E quanto dizia!
O pai passara ali horas, longas horas da sua infância.
Enquanto a mãe, avó de J. e M., sachava o milho, o pai deles abeirava-se das águas tranquilas e divertia-se.
– Agora, tenho 18 anos! Agora, tenho 10 anos! Agora, sou Pedro! Agora, Luís!
E as águas respondiam-lhe.
O seu rosto, refletido nas águas, ora aparecia, ora desaparecia. E não era sem razão.
O abade Santiago chamara-lhes as águas de ‘Aletes’.
Ele bem sabia porquê e o pai de J. e M., não conseguindo perceber porquê tal nome, bem sabia a que correspondia a distinção daquelas águas.
‘Aletes’ lembrava as águas do rio que corre no Hades. As suas águas apagavam todas as memórias. Eram águas de esquecimento, donde derivava o nome de ‘Letes’. Rio do esquecimento.

O regresso àquele local entusiasmava J. e M., mas não menos o pai.
Depois que o pai morrera, em situação que fizera recair sobre o seu irmão a suspeita de um comportamento violento que ele desmentia e assegurava que a morte teria sido acidental, o desejo de regressar àquele lugar tornara-se denso desejo tardiamente satisfeito.
Por isso, chegados à casa de todas as memórias, prontamente, pai e filhos partiram a correr para as águas do lameiro.
O lameiro trazia-lhe, bem certo, as memórias dos tempos onde, numa pequena corga que desviava um resquício de água tirada do ribeiro, se lavavam as ‘tripas’ com que se haveriam de fazer os chouriços que deliciavam as suas merendas. E os salgueiros onde dependurava as suas divertidas tardes de sol. E, claro, as muitas horas a apanhar uvas do chão, nas vindimas que, ao entardecer, haveriam de levá-lo ao lagar para, com os ‘homens’ pisar ‘o vinho’.
Todas estas memórias tornavam aquele lugar singular.
Mas a principal ainda estava por desvendar aos olhares argutos de J. e M.
O pai levava, na mão, uma foto de família.
J. e M. estranhavam aquele ritual. Ir a um sítio e levar uma foto de família parecia-lhes estranho, mas o pai tinha destas coisas.
Ao abeirarem-se do ribeiro, o silêncio tomou conta do pai. Sentiam que lhe batia, em ritmo acelerado, no peito o coração.
Viram-no aproximar-se da água que lambia a margem do lameiro, Baixou-se. Tirou do bolso a foto e fixou, nela, o olhar. Depois, lentamente, olhou para as águas, nas quais se refletia o conteúdo da foto.
Voltou a olhar e um choro convulsivo tomou conta dele.
J. e M. aproximaram-se do pai e abraçaram-no. Branquinho pousou sobre aquela autêntica foto de real afeto.
– O que vedes?
– A foto de todos.
– De todos? – perguntou o pai.
– Estranho! – disse J. – O tio não aparece refletido nas águas.
– Estas águas não mentem. Por isso, o abado Santiago lhes chamara ‘as águas Aletes’, as águas da memória, da verdade. Quando eu era pequeno, vinha para aqui e, ora mentia, ora dizia a verdade. Quando mentia, o meu reflexo desaparecia. Quando dizia a verdade, ali aparecia eu. Se perguntarmos a estas águas quem mente, numa foto, o mentiroso não aparecerá.
Hoje, descobri a verdade sobre a morte do vosso avô.
Que outras verdades reservarão estas águas?


 

Imagem de Tumisu por Pixabay

 


*Alberto Ferreyra diz que as suas letras habitam a mente e saem da mão de alguém nascido em terras gaulesas, ainda que afirme, em sussurro, que o seu real nascimento ocorreu nas margens do Antuã, em abril de 2024. É, por isso, um prematuro autor literário, germinado da inspiração que a realidade proporciona quando se tem a companhia, nos livros, de génios como Jorge Luis Borges, Miguel Torga, Gabriel García Marquez ou personagens como Poirot ou Padre Brown.
Na sua escrita, cruzam-se o real e o imaginado, o fictício e o histórico, numa embrenhada teia em que o leitor continua a ler, mesmo já depois de fechado o conto. O real continua a fecundar histórias na mente de quem lê Ferreyra. Cada conto, feito dos mistérios desvelados, aproxima o tempo e distancia o espaço, esticando-o até ao eterno e ao infinito. Ao ler Ferreyra, faz-se ‘silêncio’ (‘mystério’ alude à etimologia grega da palavra, que remete para o ‘fazer silêncio’, ‘emudecer-se’…) para que possam ecoar as palavras, para que possa desenovelar-se o enredo sucintamente desvelado.
J. e M., protagonistas de cada um dos contos, acompanhados, em alguns deles, pelo seu periquito ‘branquinho’, fazem emergir, do real em que se enredam, histórias que, nascendo da imaginação de Ferreyra, permanecem como realidades possíveis, deixando a suspeita de terem mesmo ocorrido.
Se não foi real, Ferreyra o criará, inspirado numa cosmovisão que tanto deve àquela religião que fez do encarnado a condição fundamental do existir.
A vinte e três (23) de cada mês, habitaremos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra…