Qui. Mai 15th, 2025
Mystérios lusitanos | A vinte e três (23) de cada mês, habitamos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra…

(Nos ramos da escrita, repousam, vezes sem conta, as gralhas da distração, ocultas, sob múltiplos disfarces, até que alguém as enxote. Alberto Ferreyra contou com o fino olhar da sua amiga Teresa Correia, detentora do segredo da sua identidade, para afastar ou caçar o grasnar das gralhas. Está-lhe, por isso, muito grato…)

Alberto Ferreyra*

– Não me digas que este é o avô… – J. olhava, com assombro, para uma foto recolhida de uma pilha de cartas e papéis antigos. Fotos não havia muitas, e todas com uma cor que M. lhe dissera ser ‘sépia’.
No seu imaginário, a cor sépia gerava um ambiente em que tudo era a preto e branco…
Vendo-a com aquele olhar vazio, J. imaginou o que ia na cabeça da irmã e, com um estalar de dedos, acordou-a do torpor.
– Não, menina M., naquele tempo também havia cor. Não era tudo preto ou branco ou amarelecido. Os registos é que são a preto e branco ou… a sépia, como dizes. A realidade devia ser muito colorida e cheia de aventuras. Que foto é essa?
O avô aparecia preso pelos dois braços, levado por dois soldados da GNR.
– Não sabia que o avô se tinha metido em sarilhos.
Surpreendidos com a foto, não descansaram enquanto a mãe não os lançou em busca de um novo desafio.
– A história do vosso avô dava um romance… Do vosso avô e da vossa avó.
Mas o vosso tio Pedro é que sabe a história com detalhe.
O tio Pedro seguira as pisadas do pai, como fiel de armazém.
Na zona dos esteiros, junto a um dos mais finos ‘cabelos’ da ria de Aveiro, perto da estação de Estarreja, ficava o armazém onde a azáfama de hoje apenas aludia à de outros tempos. Ali, chegavam e partiam, em grande rebuliço, carradas de bacalhau.
Fiel no armazém como fora o fiel companheiro dos portugueses, Pedro aprendera com o pai a contornar os limites que o regime impunha.
Conhecia, por isso, os alçapões onde se abria uma outra cidade, fresca, mas seca para que, depois de preparado, o bacalhau pudesse ficar distante dos olhares da polícia que sempre pesava e continha os limites permitidos por lei.
Uma espécie de lei seca impunha rigorosos limites ao armazenamento.
Ultrapassá-los significava prisão.
O pai de Pedro, Joaquim, sempre seguira, à risca, as instruções do sr. Francisco, proprietário do armazém.
– O que vier a mais segue o rumo dos alçapões…
Impossível adequar mais o título de ‘fiel de armazém’ do que o que se atribuíra a Joaquim. Ninguém lhe ouvira, jamais, falar de alçapões ou outras cidades escondidas.
Mas a mentira tem perna curta.
Em meados da década de cinquenta, pleno período de ‘chumbo’ que o Estado Novo impusera ao armazenamento de bacalhau, Joaquim e Francisco escondiam, numa outra cidade só deles conhecida, o que sobrava e lhes chegava para além dos limites.
Chamavam-lhe bacalhau da ‘terra velha’ (da ‘Terra Nova vinha o bacalhau; na ‘Terra velha’ se escondia) e logo se procedia como combinado.
Alguém, porém, descobrira a história.
Ao amanhecer de uma quinta-feira, como que aludindo a uma outra, em que de cravos se fez a liberdade do regime controlador, o armazém abriu, mas já ninguém entrou nem saiu.
Só Francisco se encontrava, àquela hora, nas instalações.
E era a ele que a polícia queria, pois Joaquim só obedecia a ordens.
Sob ameaça, tentaram saber onde se escondia a cidade chamada ‘terra velha’.
Francisco chorava… Sabia o que o esperava.
Entretanto, Joaquim chegou.
Abeirou-se da GNR e encetou conversa que fez libertar Francisco.
Logo ali ficou detido Joaquim, que, porém, pediu que o levassem a Francisco.
Da conversa, só ficou um registo que Joaquim escreveu e entregou, assinado pelos dois, em papéis semelhantes.
E foi levado para Peniche…
Volvidos três anos, Joaquim regressou e procurou Francisco.
De papel na mão, barba comprida e desalinhada, somava à leveza dos movimentos uma alegria no rosto que a todos surpreendeu.
– Não vinha o homem da prisão de Peniche? Bem certo que obras recentes tinham transformado aquela numa prisão com melhores condições, mas prisão era prisão…
O tempo tudo traz e tudo esclarece.
Um ano volvido, tudo se esclareceria, quando os sinos da Igreja anunciaram novas núpcias…
– O vosso avô guardara o papel assinado pelos dois, Francisco e Joaquim, e apresentara-o, no regresso da prisão.
No papel se desvendava todo aquele novelo:
– Irei no seu lugar, para a prisão, se me prometer que, ao sair dela, casarei com a sua filha Olinda…
A assinatura de ambos chancelara o futuro…
– Que história, M.! Um avô assim é um autêntico herói de um ‘Romeu e Julieta’ da Ria de Aveiro… Quanta cor há, afinal, num retrato a sépia!


 

Imagem de Tumisu por Pixabay

 


*Alberto Ferreyra diz que as suas letras habitam a mente e saem da mão de alguém nascido em terras gaulesas, ainda que afirme, em sussurro, que o seu real nascimento ocorreu nas margens do Antuã, em abril de 2024. É, por isso, um prematuro autor literário, germinado da inspiração que a realidade proporciona quando se tem a companhia, nos livros, de génios como Jorge Luis Borges, Miguel Torga, Gabriel García Marquez ou personagens como Poirot ou Padre Brown.
Na sua escrita, cruzam-se o real e o imaginado, o fictício e o histórico, numa embrenhada teia em que o leitor continua a ler, mesmo já depois de fechado o conto. O real continua a fecundar histórias na mente de quem lê Ferreyra. Cada conto, feito dos mistérios desvelados, aproxima o tempo e distancia o espaço, esticando-o até ao eterno e ao infinito. Ao ler Ferreyra, faz-se ‘silêncio’ (‘mystério’ alude à etimologia grega da palavra, que remete para o ‘fazer silêncio’, ‘emudecer-se’…) para que possam ecoar as palavras, para que possa desenovelar-se o enredo sucintamente desvelado.
J. e M., protagonistas de cada um dos contos, acompanhados, em alguns deles, pelo seu periquito ‘branquinho’, fazem emergir, do real em que se enredam, histórias que, nascendo da imaginação de Ferreyra, permanecem como realidades possíveis, deixando a suspeita de terem mesmo ocorrido.
Se não foi real, Ferreyra o criará, inspirado numa cosmovisão que tanto deve àquela religião que fez do encarnado a condição fundamental do existir.
A vinte e três (23) de cada mês, habitaremos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra…