Ter. Jul 8th, 2025
Mystérios lusitanos | A vinte e três (23) de cada mês, habitamos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra…

(Nos ramos da escrita, repousam, vezes sem conta, as gralhas da distração, ocultas, sob múltiplos disfarces, até que alguém as enxote. Alberto Ferreyra contou com o fino olhar da sua amiga Teresa Correia, detentora do segredo da sua identidade, para afastar ou caçar o grasnar das gralhas. Está-lhe, por isso, muito grato…)

Alberto Ferreyra*

J. e M. estão em Sintra.
Os dias de interrupção letiva criaram o quadro propício para umas curtas férias na Serra onde ‘O inverno vem fazer verão às nossas praias’.
Aguardam pelo jantar, enquanto apreciam as paredes ‘Vintage’ da ‘Casa’.
O acaso (esse interstício onde Deus se esconde) levou-os à ‘Casa’, o lugar onde se quer voltar sempre que se parte.
Na mesa ao lado, discute-se genética. Não é bem um tema comum para quem quer aconchegar o estômago, mas uma manchete do jornal do dia dera o pretexto: ‘Pedro, o ministro, descobre que os seus pais não são quem sempre pensara’.
As conversas daquele dia andaram todas à volta do tema. Pedro, ministro das finanças, descobrira, fortuitamente, que a sua vida andara enredada numa trama mentirosa.
O encontro dos seus pais, na sua tomada de posse como ministro, dera-lhe a certeza.
Havia, agora, que descobrir o que aconteceu.
O jantar, entretanto, dera o aconchego necessário, entre batatas bravas e um bife de novilho em molho à chefe.
A conversa não se fechara ali, porém. O mistério assomara à janela das mentes, naquela estrada de Sintra.
Regressaram ao hotel Vila Galé. O seu número 905 abria cenário para se somar mistério ao mistério. Da janela do quarto voltado a norte, via-se uma casa amarela a encimar a colina, de onde se percebia o tremeluzir de uma pequena luz, uma espécie de sinal de socorro podia não ser mais do que uma vela, mas M. não era de se ficar pela presunção da dúvida. Gostava de a alimentar.
Chamou J., pousou Branquinho (o seu ‘luminoso’ periquito de penas brancas) e partiu em direção à fonte da luz.
Os pais não se deram conta da sua saída. Só quando chamaram por eles é que a ausência se fez notada.
-Entrem! Entrem!-disse-lhes uma bela idosa, muito perto de cumprir um século. -Dei sinal, na esperança de alguém me ver. Estardes aqui é sinal de que seguistes a luz. Tenho um segredo para vos contar, respeitante a uma notícia que a televisão não se cansa de dar. Pedro é meu filho! A mãe que pensa ser de Pedro não o é e perdeu o filho na noite em que o meu Pedro nasceu. Troquei-o, pois temi que, na minha solidão, não o pudesse sustentar.
O enigma parecia estar desvendado, mas faltava perceber porque descobrira Pedro que a sua vida fora uma mentira.
Entusiasmados com a descoberta, J. e M. e Branquinho regressaram ao hotel onde já todos andavam em alvoroço.
-Não se zanguem connosco. Lembram-se da conversa ao jantar?
Os pais pareciam aturdidos e sem entender do que falavam.
-Descobrimos quem é a mãe de Pedro, o ministro. Só ainda não percebemos como descobriu a mentira da sua vida.
Sintra não era longe de onde poderiam dar nota da sua descoberta. Partiram em direção ao Terreiro do Paço.
Haveriam de os deixar entrar…
As ‘finanças’ eram castelo bem trancado, mas lá conseguiram entrar. A convicção com que garantiam ter informação que interessaria ao ministro abriu-lhes as portas.
Pedro sentou-os à sua mesa.
-…que sabeis quem é a minha mãe!- disse.
-Antes, porém, queríamos perceber como compreendeu que andara enganado.
-Estudei economia e finanças já tarde na minha vida, pois, antes, tinha-me dedicado à genética. Sabia que a cor azul dos olhos era, geneticamente, recessiva. Como podeis ver, sou um homem de olhos castanhos. Os da minha mãe, com quem sempre vivi, eram de um azul deslumbrante. Na tomada de posse, reencontrei o meu pai, que me abandonara ainda bebé. Quando o vi, e encontrei o azul profundo do seu olhar, percebi que não eram meus pais aqueles que eu sempre tomara por tal.
-Temos a chave para o enigma que o atormenta. A sua mãe vive na casa amarela. Verá que o amor foi o que justificou toda a mentira da sua vida…


 

Imagem de Tumisu por Pixabay

 


*Alberto Ferreyra diz que as suas letras habitam a mente e saem da mão de alguém nascido em terras gaulesas, ainda que afirme, em sussurro, que o seu real nascimento ocorreu nas margens do Antuã, em abril de 2024. É, por isso, um prematuro autor literário, germinado da inspiração que a realidade proporciona quando se tem a companhia, nos livros, de génios como Jorge Luis Borges, Miguel Torga, Gabriel García Marquez ou personagens como Poirot ou Padre Brown.
Na sua escrita, cruzam-se o real e o imaginado, o fictício e o histórico, numa embrenhada teia em que o leitor continua a ler, mesmo já depois de fechado o conto. O real continua a fecundar histórias na mente de quem lê Ferreyra. Cada conto, feito dos mistérios desvelados, aproxima o tempo e distancia o espaço, esticando-o até ao eterno e ao infinito. Ao ler Ferreyra, faz-se ‘silêncio’ (‘mystério’ alude à etimologia grega da palavra, que remete para o ‘fazer silêncio’, ‘emudecer-se’…) para que possam ecoar as palavras, para que possa desenovelar-se o enredo sucintamente desvelado.
J. e M., protagonistas de cada um dos contos, acompanhados, em alguns deles, pelo seu periquito ‘branquinho’, fazem emergir, do real em que se enredam, histórias que, nascendo da imaginação de Ferreyra, permanecem como realidades possíveis, deixando a suspeita de terem mesmo ocorrido.
Se não foi real, Ferreyra o criará, inspirado numa cosmovisão que tanto deve àquela religião que fez do encarnado a condição fundamental do existir.
A vinte e três (23) de cada mês, habitaremos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra…