Modos de interação entre ciência e religião
Pontes
Ponte (VI) Dúvida—Clareza
Miguel Oliveira Panão
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A escritora Anne Lamott ofereceu-nos uma intelecção ímpar quando escreveu — «O oposto da fé não é a dúvida, mas a certeza.» E quando opomos a dúvida à fé, talvez signifique uma ideia distorcida de fé. O teólogo americano John Haught diz-nos que — «nas raízes do desejo irrepreensível de tornar coerente o sentido das coisas está uma confiança básica.» Por isso, viver a fé é essencialmente confiar. A dúvida torna-se o modo de aprofundar esta confiança básica, consolidando-se ao longo da vida. E uma das primeiras pessoas a aprofundar esta confiança básica que é a fé foi Maria.
Quando o anjo visita Maria e lhe diz que conceberá e dará à luz um filho, Maria duvida e pergunta-lhe — «Como será isso, se eu não conheço homem?» Curioso que não lhe pergunta “Porquê eu?”, mas “Como?” que é uma dúvida bem mais ao estilo científico. O anjo responde, mas eu duvido que ela terá entendido todo o alcance daquela resposta, mas sentindo-se segura do amor de Deus, dá o passo e acolhe a experiência de conceber Jesus pelo Espírito Santo. A certeza é oposta à fé quando nos fecha ao inesperado que Deus, ou a procura da Verdade, pode suscitar em nós. Daí que substituir certeza pela palavra clareza seja mais seguro. Porém, o abismo entre a dúvida de não saber e a clareza quando se compreende aquilo que se sabe mantém-se. Qual a ponte que nos permite a partir da dúvida chegar à clareza?
No mundo imerso em oceanos de informação, estar informado dá-nos a sensação de compreendermos aquilo que sabemos, mas a realidade é outra. A maior fonte de pesquisa no mundo actual é a internet. Mas é preciso estar atento porque nem todas as fontes de informação são credíveis. A dúvida é o que mantém viva a nossa sede de ir à fonte e se alguém nos apresenta um número, deveria ser imediata a necessidade de conhecer a origem desse número. Isso aconteceu comigo.
Quando li num livro (nem sequer foi na internet) que já tínhamos produzido betão suficiente na história para cobrir a superfície do planeta com uma camada de 2mm de espessura, achei interessante e fiquei curioso. Como davam a referência fui ler o artigo original. Primeiro precisei de compreender no artigo como obtiveram a massa total de betão na história. Depois, precisava de compreender como se relaciona a massa de betão (em média) com o volume por essa ocupado (massa volúmica) e, por fim, precisava de compreender como obter a espessura de uma camada esférica fina desse betão. A massa volúmica média do betão que encontrei nesse artigo era de 1440 kg/m^3, e para a quantidade de betão produzida, as contas de uma camada esférica com raio interior igual ao raio do planeta Terra não me conduziram ao valor de 2mm, mas de 0.7mm, ou seja 65% inferior, o que é significativo. Estariam as minhas contas erradas? Revi uma e duas vezes e confrontei com uma outra pessoa e, aparentemente, o meu raciocínio parecia correcto. Então, como gostava de usar este exemplo num artigo optei pelo meu resultado citando o artigo original, em vez de usar o exemplo desse livro. Da dúvida à clareza foi o acto intelectivo que fez a ponte.
O jesuíta, teólogo e filósofo, Bernard Lonergan s.j., escreveu uma obra-prima intitulada Insight que se traduziria por intelecção, mas se analisar a palavra original poderíamos dividir em “in-“ = por dentro e “-sight” = visão, ou seja, uma intelecção é um “olhar a partir do interior das coisas” que significa compreender. E Lonergan define o acto intelectivo com quatro passos:
- estar atento (confrontar com as nossas experiências);
- ser inteligente (compreender esse confronto);
- ser crítico (avaliar se compreendemos bem o confronto com as experiências);
- ser decisivo, escolher ou ajuizar.
Existem pessoas que passam da observação à crítica ou juízo sem dar o passo da compreensão. Lonergan é duro ao dizer que essas pessoas sofrem de arrogância intelectual, tornando-se ultracrepidários (pessoas que dão opiniões sobre o que desconhecem). Sentem-se super-heróis que saltam o abismo da dúvida à clareza sem querer percorrer o árduo caminho da ponte que o acto intelectivo exigem, sobretudo através do estudo, tempo, paciência próprias do esforço para compreender seja o que for. O mais certo é caírem no abismo.
O acto intelectivo como ponte entre dúvida e clareza é um acto de amor. Amor à verdade num mundo que sofre da pós-verdade, isto é, da “verdade a sentimento ou a gosto”. Uma pós-verdade que faz da dúvida um produto para semear a divisão, distorcendo o seu valor de impulso inicial para o aprofundamento da nossa compreensão do mundo nas suas dimensões material, cognitiva e espiritual. Mas quanto mais actos de amor intelectivos procurarmos fazer, maior entusiasmo sentiremos em continuar a fazê-los. O resultado não será somente as pontes atravessadas da dúvida à clareza, como sobretudo o testemunho aos outros do valor dessa possibilidade. Pois, o acto intelectivo quando ponte entre dúvida e clareza conduz a uma vida com mais sentido.