Modos de interação entre ciência e religião
Pontes
Ponte (IX) Física—Metafísica
Miguel Oliveira Panão
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A dimensão física da realidade experimenta-se desde que nos levantamos até que nos deitamos. Mas um pensamento que nos surge, embora suportado pela física que se desenrola dentro das nossas cabeças, se não o verbalizarmos, permanence em nós como uma experiência metafísica. Isto é, que está para além da física, entrando no que é mais nuclear e identitário a nós próprios: a consciência.
À física associamos o mundo natural. Logo, será que à metafísica se associa o que é sobrenatural? E será que o sobrenatural se restringe a uma questão de crença, sem capacidade de validação pela física? — pensam algumas pessoas. Mas, sem se darem conta, o que estão a fazer é reduzir a validação da realidade à que é física. Porém, se estiver a ler estas palavras, talvez o faça em silêncio, e que forma tem a física de traduzir píxeis por palavras com sentido? A metafísica não é uma hipótese, mas uma parte tão intrínseca à realidade como a física. A ponte entre ambas parece-me ser o que referi antes: a consciência. Mas não é trivial.
Ao tentarem compreender o sentido do tempo na realidade quântica, isto é, do mundo mais ínfimo, o estudiosos sentiram a necessidade de re-imaginar as relações entre matéria e mente. A física moderna assenta muito na separação entre matéria e mente. Por isso, quando nas neurociências se procura compreender o que é a consciência, acaba-se por se estar refém de uma certa visão fisicalista dessa. Isto é, a consciência provém das partículas existentes na natureza e das leis que as regem. Existe muito pouco espaço para compreender a mente sem que seja a partir da matéria. Por isso, se é a mente a característica humana capaz de percepcionar qualquer realidade metafísica, não chega associar os estados conscientes do ser humano à actividade cerebral. Há que ir mais longe e em maior profundidade, e a mecânica quântica, aparentemente, pode ajudar.
Uma das ideias é a de que a consciência seria uma propriedade intrínseca da matéria. Isto é, não seria a matéria microscópica que por incremento de complexidade geraria a consciência, como diria Teilhard de Chardin SJ, mas antes a micro-consciência que se considera como intrínseca à própria matéria e, sem a qual, a matéria não existe. Esta ideia é conhecida como pampsiquismo e explorada por filósofos como William James, Alfred North Whitehead ou Bertrand Russel. E se corresponder à realidade significa que, de alguma maneira, tudo no mundo contém o elemento consciente, de tal modo que deixa de ser necessário interpretar as nossas experiências em termos das suas componentes não-conscientes. Mas nem todos os físicos estão convencidos desta ideia e a razão prende-se com quão pouco sabemos sobre a consciência. Nesse sentido, como pode o pouco que sabemos revelar-se ponte entre física e metafísica?
A mecânica quântica não assenta a realidade sobre os objectos que a compõem, mas nos eventos. O princípio da incerteza de Heisenberg revela que a natureza é indeterminada na sua essência. Com diz o físico Carlo Rovelli — «a mecânica quântica introduz um elementar indeterminismo no coração do mundo. O futuro é genuinamente imprevisível.» Na prática significa que, quando o evento acontecer, então existe. Algo que enraiza a realidade nos eventos, em vez de a enraizar nos objectos. E essa é uma mudança na nossa concepção do mundo, sobretudo no que diz respeito à relação entre a consciência-de-si e a natureza do tempo.
Termos consciência de nós próprios no momento presente é, segundo o físico Lee Smolin, a experiência de que nada persiste, apenas acontece. E, por isso, dizemos muitas vezes que tudo o que temos é o tempo presente. Por outro lado, a consciência não emerge da ausência de consciência, mas da experiência do tempo através dos eventos que estão próximos de nós, não os distantes, como diria Rovelli, e ainda — «o nosso “presente” não se estende a todo o universo. É como uma bolha perto de nós.» A consciência permite-nos experimentar no corpo e na mente como não há física sem metafísica, nem metafísica sem física. A consciência como ponte entre física e metafísica dá-nos uma visão de unidade do cosmo assente nos relacionamentos e eventos entrelaçados numa narrativa como sinfonia feita de muitos instrumentos, ou seja, consciências. Numa visão do mundo através de uma consciência que emerge dos eventos experienciados, as leis físicas não se cristalizam, mas evoluem com o tempo, acompanhando o desenvolvimento da consciência. Somos eventos na história do universo. Eventos cuja liberdade criativa desperta a consciência que, sendo ponte entre física e metafísica, determina o futuro e vitaliza o presente.