Sáb. Abr 20th, 2024
Modos de interação entre ciência e religião

Perspectivas


Perspectiva Última

Miguel Oliveira Panão

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Qual o horizonte que te move? Será possível viver algo já, mas não ainda? Procurava uma última perspectiva para reflectir, e só me ocorria a perspectiva última, a que nos orienta pela escatologia, pelo Fim dos Tempos, pelos tempos que não sabemos se têm fim. Na perspectiva última os tempos cronológico, kairológico e eterno unem-se, completam-se, harmonizam-se, apesar de não sabermos bem como será tal coisa. Na perspectiva última colocamos a razão da esperança na impossibilidade de não haver no mundo qualquer fim sem finalidade. É um encontro com a Verdade Última sobre todas as coisas. É para essa perspectiva que caminhamos, quer saibamos ou não qual o caminho a percorrer.

A perspectiva última habita tanto na consciência como no inconsciente. Não tanto para mostrar o que os distingue, mas antes para os unir e iluminar sobre o papel de ambos na vida profunda. Penso que desprezamos ainda o que esta perspectiva tem para dar. E, mesmo sem essa intenção, acabamos por dar mais relevo às perspectivas de curto prazo, arriscando-nos a viver imersos nas coisas efémeras, em vez de nos deliciarmos com as coisas eternas. Talvez a razão esteja no facto das coisas eternas exigirem paciência, sentido da espera, serenidade, e acharmos que não temos tempo para isso. Mas não serão essas atitudes mentais que aumentam o desejo de profundidade que uma perspectiva última pode dar? Por exemplo, sobre o sentido da espera basta pensar quando alguém que ama pensa em quem ama.

Quando a minha esposa, a quem amo, parte para trabalhar longe, a espera vivida na perspectiva última de voltar a beber da sua presença, aumenta em mim o desejo de a reencontrar. Sei o dia e até posso saber a hora, mas isso não diminui o efeito que a perspectiva última tem sobre o desejo. Talvez por sermos seres de desejo e a perspectiva última o seu alimento.

Sobre a paciência, quando estamos numa fila grande e parece que não nos movemos, enquanto a outra fila se move, mudamos de fila, mas depois essa pára. E, entretanto, a fila onde estávamos move-se fluidamente de novo. Bolas! E, muitas vezes, é frustrante ver o lugar que antes ocupávamos nessa fila chegar primeiro ao destino. Teria sido a paciência a manter-nos na perspectiva última expressa em cada destino da nossa vida, pequeno ou grande, visível ou invisível, conhecido ou desconhecido.

E quanto à serenidade, quando são muitas as frentes a que dissemos sim e, agora, pedem a nossa resposta, ainda por cima, simultaneamente, na prática, sentimo-nos fragmentados por todas as frentes puxarem um pouco de nós, de tal modo que ficamos tensos, nervosos e irritados connosco próprios. Mas em vez de assumirmos as nossas responsabilidades pelos sim’s que demos, quantas vezes não acabamos por dirigir o tumulto interior de não sabermos bem para onde nos virarmos, para o lançamento de farpas na direcção daqueles que nos rodeiam? Cada sim pode abrir uma perspectiva nova, mas uma multiplicidade demasiado elevada de perspectivas, a querer abrir caminho em nós, pode dilacerar-nos. Talvez encontremos, de novo, o valor da serenidade que a perspectiva última nos abre por ser única.

O mais difícil de acolher em relação à perspectiva última será o que a nuvem do desconhecido oculta e o coração humano mais deseja conhecer — Deus. O Autor Desconhecido pergunta — «Como poderei pensar o próprio Deus, e o que ele é? E a isto só posso dizer, ‘Eu não sei.’» — Dá para entender a dimensão do drama desta resposta. Pois, quando nos deixamos banhar na mente pela luz da perspectiva última, reconhecemos quão pouco sabemos. Talvez porque queremos “agarrar” esta perspectiva com o pensamento quando essa não é a melhor estratégia. Se Deus é amor, talvez amar seja o modo de chegar onde o pensamento não consegue ir. Amar com gestos concretos ou através do silêncio da contemplação. Porém, como diz ainda o Autor Desconhecido — «a própria obra da contemplação deve ser humilhada e coberta com a nuvem do esquecimento.» Ou seja, talvez a Perspectiva Última sobre todas as coisas nos convide a deixar para trás tudo aquilo que pensamos saber. Temos de esquecer.

Só o esquecimento por amor traduz a abertura total de um coração que se protege do endurecimento das perspectivas fechadas. E, pelo esvaziamento total de si por amor, cada um de nós, subtilmente, começa a esboçar um sorriso nos lábios pelo deslumbramento da surpresa que a Perspectiva Última, no Fim dos Tempos, a todos revela. O quê? Não sei. Mas este não-saber mantém-me aberto, em movimento e vivo na esperança.


Imagem de Alex Hu por Pixabay