Modos de interação entre ciência e religião
Pontes
Ponte (XII) Morte—Vida
Miguel Oliveira Panão
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São duas realidades antagónicas que vivemos dentro de nós e fora de nós. Não há morte sem vida, nem vida sem morte. Para que uma espécie possa evoluir é preciso gerar nova vida e morrer. E só podemos experimentar a morte se estivermos vivos, assim como só podemos experimentar a vida verdadeira quando nos confrontamos com a morte. Porém, entre a morte e a vida existe um abismo que parece intransponível. Que ponte poderá unir a morte à vida?
“O que é a vida?” é o título de um pequeno livro do físico Erwin Schrödinger que explora a emergência material de organização a partir da complexidade que dinamiza a matéria e por emergência confere-lhe vida. Não me recordo de nenhum título que se assemelhe a “O que é a morte?” que tenha tanto interesse como aquele centrado na vida. Mas será que a vida e morte se restringem a realidades no plano físico da existência?
Existem pessoas vivas fisicamente e mortas espiritualmente, assim como pessoas mortas fisicamente e vivas espiritualmente. Mas enquanto podemos conhecer e interagir com as primeiras através da realidade física acessível a todo o ser “vivo”, as segundas conhecemos e interagimos apenas por acolhimento da realidade a um plano existencial que está para além da manifestação física. E quanto mais vivermos o abismo entre morte e vida, mais difícil será acolher a possibilidade de uma ponte que una estas duas realidades da experiência humana.
Sem o relacionamento da matéria entre si, a vida não seria possível. Nesse sentido, a morte expressa-se frequentemente como a quebra dos relacionamentos. Mas se formos em profundidade, esses relacionamentos não são apenas exteriores, mas também interiores. Separamos muitas vezes a morte da vida, e talvez seja essa a razão de muitos pensarem a morte quando deixam de ter sentido para a vida, ou muitos outros abdicarem de viver plenamente quando deixam de ter sentido para a morte. A vida e a morte entrelaçam-se num permanente sentimento de expectativa diante das mudanças que se geram à nossa volta e nos fazem experimentar o que é o tempo. Quer isso dizer que a expectativa será a ponte entre morte e vida? A expectativa toca naquele “já, mas não ainda” como dimensão escatológica da realidade, mas não consigo compreender como possa unir morte e vida.
Escrevo este texto dentro de um avião e contemplo as nuvens. A turbulência faz-me pensar como, dentro desta máquina de metal, a minha vida é frágil e à mercê de tanta coisa menos da minha vontade. Os acidentes de aviação na Europa são raros, mas alguém prevê que sofrerá um acidente quando entra num avião? Nada mais posso fazer senão esperar aterrar em segurança. A minha família vive a expectativa da minha chegada ao destino, mas no fundo vivem a esperança de que tudo corra bem. Quem se constitui na esperança não receia viver ou morrer porque na esperança estas duas realidades são uma só. A esperança parece-me ser a ponte que une morte e vida.
Quem vive realmente, morre para si mesmo um pouco todos os dias e, por vezes, várias vezes ao dia. Quem morre realmente, vive para si mesmo o tempo todo. A morte que nos separa da vida é o buraco negro de um coração que deixa de acolher a luz dos outros que ilumina e impede a partilha da luz dentro de si que quer iluminar o mundo à sua volta. A esperança leva-nos pacientemente pelo caminho da morte do eu para nos abrir aos relacionamentos que nos devolvem um eu transformado e vivificado relacionalmente.
Vida e morte unidas pela esperança revelam-se como um ciclo evolutivo nas realidades físicas e espirituais. São como o dia e a noite unidas pela esperança de que o planeta continuará a rodar. Quem perde a esperança diante da mais atroz adversidade quebra este ciclo que faz parte do sentido e significado da nossa existência. Quem perde a esperança deixa, ou nunca chega a acreditar na vida após a morte, limitando a sua visão do mundo à morte no fim da vida. Não tem de ser assim.
Dizem que a esperança é a última a morrer, mas sob o prisma da ponte que essa se revela entre morte e vida, a esperança não morrerá mais enquanto houver morte e vida. A esperança é o fio de ouro que une a escuridão à luz, fazendo-nos descobrir a luz no meio da maior escuridão, ou fazendo sombra que permita ver quando a luz cega.
Somos seres de esperança que têm diante de si uma escolha: descobrir as pontes que unem as margens mais distantes; ou negar a sua existência. Temos sempre diante de nós a escolha da morte e da vida. “Escolhe a vida” (Deut 30, 19) unida à morte pela esperança de um novo amanhã pleno de momentos surpreendentes de unidade das várias realidades deste mundo. Momentos inesperados onde o finito e o infinito se tocam nessa ponte de esperança entre a morte e a vida.
Imagem de Daniel Reche por Pixabay