Modos de interação entre ciência e religião
Pontes
Ponte (XI) Próprio—Altrui
Miguel Oliveira Panão
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«Amarás o teu próximo como a ti mesmo.» (Mt 22, 39)
Quem se volta para si mesmo, isola-se. Quem se volta para os outros, esquecendo-se de si mesmo, é louvado, mas como pode alguém dar o que não tem? O Eu compreende-se muitas vezes como um ego que pensa somente em si, mas outras vezes é a palavra que naturalmente usamos para nos identificarmos e assumirmos as nossas responsabilidades. Ou seja, por vezes tem uma conotação negativa — “ego”ísta — e quando isso não acontece, em vez de Eu poderíamos usar a palavra “Próprio”. Porém, não deixa de ser curioso quando algo justo relativo a uma situação dizermos ser “apropriado”. O prefixo “a-“ serve para negar (an-) ou ir-ao-encontro-de (ad-), logo, neste caso, será que nega ou vai ao encontro do Próprio? Isto é, será algo considerado “apropriado” quando se nega a si próprio e entrega-se ao outro — altrui? Ou considera-se “apropriado” o que vai ao encontro do Próprio e, por isso, que está fora desse provindo, talvez, do outro? Em Latim, o verbo é descrito como ‘ad, proprius’, pelo que a origem está no segundo sentido, o que é interessante porque a palavra considera como bom o que vai ao encontro do próprio— «amarás… como a ti mesmo.» Mas na mente e coração ressoa a pergunta: que ponte poderá unir o Próprio ao Altrui para dar corpo ao amor próprio sem que se torne egoísta, mas altruísta?
A teologia possui um conceito que expressa como pode ser impossível olhar o Próprio sem ver nele o Altrui: a pericorese na Trindade. O que é “pericorético” significa que não posso olhar, por exemplo, para o esposo sem ver nele a esposa, nem para a esposa, sem ver nela o esposo. É o modo trinitário de ser onde não posso contemplar o Pai, sem ver n’Ele o Filho e o Espírito Santo, ou qualquer uma das outras Pessoas, sem ver em cada uma as outras duas. Qualquer ponte que una o Próprio ao Altrui seria pericorética. Depois penso no mecanismo de transmissão de calor por radiação.
As trocas de calor por radiação acontecem somente entre duas superfícies, mas, para isso, é importante que se “vejam”. Quando se “vêem”, interceptam-se os olhares e trocam calor por radiação entre si. Em inglês, à radiação que sai de uma superfície (i) e é interceptada por outra (j) designamos por View Factor que em português expressamos como “factor de forma”, Fij (Factor de forma de i para j). O curioso é que se assumirmos a área daquele que dá radiação (área de i = Ai) e a usarmos para “espalhar” (multiplicar) o Fij, resulta numa relação geométrica de visões chamada de relação da reciprocidade em que Ai x Fij = Aj x Fji. Isto é, aquilo que (i) “vê” de (j) — e que é Próprio a (i) por causa da sua área — é igual ao que (j) “vê” de (i). Por isso, aqui, a reciprocidade faz com que o Próprio se descubra verdadeiramente no Altrui e vice-versa. Qualquer ponte que una o Próprio com o Altrui constitui-se na reciprocidade. E parece-me que a regra para atravessar essa ponte seja de ouro.
«Faz aos outros o que gostarias que fizessem a ti próprio. Ou não faças aos outros o que não gostarias que fizessem a ti próprio.»
É uma regra de ouro presente em diversas religiões que expressa esta verdade universal da importância de aprendemos a nos colocarmos na pele do outro (Altrui) para entendermos melhor o que está a viver. Por vezes esta regra, como a reciprocidade, são entendidas como sendo do interesse próprio relacionarmo-nos com o outro e fazer o que gostaria que lhe fizéssemos pensando que um dia poderemos cobrar-lhe esse favor. Esta visão deturpadora da regra de ouro e da reciprocidade assenta nos apegos do Eu, enquanto o Próprio vive no desapego até de si, de tal modo que nega-se — “apropriado” — para oferecer algo de positivo seja em que contexto for. A regra de ouro ou o amor a si Próprio como medida do amor ao Altrui, são acções que constroem a ponte que une o Próprio ao Altrui.
Esta ponte aponta para uma mútua (recíproca) íntima (pericorética) imanência. E a palavra que melhor expressa esta realidade é comunhão. Qualquer paradoxo gerado pela busca do interesse próprio e o interesse do outro esbate-se quando atravessamos a ponte da comunhão. Essa leva à descoberta do interesse próprio através do interesse do outro. Essa transforma o interesse próprio com o interesse do outro na medida em o interesse do outro se transforma com o do próprio. Na comunhão profunda de vida desvanecem-se os apegos, desentendimentos, egoísmos, tudo o que nos isola e divide pela descoberta da beleza e riqueza daquilo que nos distingue. Na comunhão, as dores são o sinal de vivermos uma experiência transformativa da qual nunca mais seremos os mesmos, mas muito mais, melhores e diferentes do que éramos.
Imagem de FredDelatcho por Pixabay