Modos de interação entre ciência e religião
“P”… [“Pautado…”]
Pautado pelo Trabalho
Miguel Oliveira Panão*
Todo o ser humano que pode trabalha. O trabalho pauta a vida humana desde os seus primórdios. Por que razão pautar a nossa vida pelo trabalho? Curiosamente, aquilo que o ser humano tanto valoriza actualmente tem a sua raiz num instrumento de tortura: o tripalium.
A origem da palavra “trabalho” pode ser rastreada até o termo latino “tripalium”, que originalmente referia-se a um instrumento de três paus (três = “tri”, pau = “palus”) usado para prender animais ou escravos a serem torturados. Com o tempo, “tripalium” evoluiu para “trepalium” no latim vulgar, que por sua vez se desenvolveu para designar o acto de submeter-se a uma grande dificuldade ou sofrimento, similar ao que os animais ou pessoas experimentavam quando presos ao tripalium. Quando a palavra começa a transformar-se para reflectir o conceito de “trabalho” no sentido de uma actividade que exige esforço físico ou mental, seria o momento da mudança de perspectiva sobre o trabalho. Isto é, em vez de uma vida pautada pela tortura e sofrimento, uma vida pautada pelo trabalho pretendia ampliar a nossa visão desse acto humano num sentido mais positivo como empenho e labor produtivo. Se todos reconhecemos ainda hoje que a nossa vida de trabalho se associa, de certo modo, ao seu passado etimológico de dificuldade e esforço, e se dentro desse grupo de pessoas algumas sentem o trabalho como uma tortura, por que razão haveríamos de alterar na história aquilo que significava trabalhar para uma visão mais positiva?
Na Termodinâmica, o trabalho é uma forma de energia que resulta de uma força empregue num deslocamento que origina movimento. E a natureza de todo o movimento é ser uma fonte transformadora da realidade. Por outro lado, apesar desta visão termodinâmica do trabalho ser exterior, poderíamos aplicá-la como metáfora para desenvolver uma ideia de trabalho interior onde os pensamentos são a força motriz que num “deslocamento temporal” origina crescimento e amadurecimento pessoal. Quando visto como gerador de movimento, o trabalho vai para além de ser um fim, tornando-se num processo. A maior parte da humanidade vê a sua vida pautada por este processo, mas quantos são aqueles que pensam profundamente na relação que têm com o trabalho?
A razão de trabalharmos relaciona-se com a necessidade de sustento. Não só pretendemos colocar pão da mesa, mas também smartphones nas mãos, serviços de streaming nos olhos e tudo tem um preço. Por isso, trabalhamos e queixamo-nos de não ter tempo para a família se a quisermos sustentar, mas não estará esse lamento ligado à actual visão obscura de trabalho que a sociedade moderna nos exige? Qual o preço do trabalho quando equiparado a uma necessidade? Tempo de vida.
Não importa tanto quanto ganhamos, quanto o tempo de vida que gastamos para chegar ao patamar que aspiramos. Quando compramos um smartphone por um determinado montante, raramente pensamos no tempo de vida que consumimos para adquirir determinado bem. Sacrificamos o tempo 2.0 (cronológico) que temos, sem pensar no modo como o trabalho afecta o “Tempo 3.0”, isto é, o tempo epocal associado à nossa presença única neste universo como exploro no meu livro com esse título.
Uma vida pautada pelo trabalho no tempo 2.0 orienta-nos em função da necessidade de ser produtivo. Porém, uma vida pautada pelo trabalho no tempo 3.0 orienta-nos na direcção de uma vida plena (lifulness) onde os “três-paus” (tripalium) não torturam, mas sustentam o lugar onde nos sentamos para contemplar a vida que nos é dada.
Recordo-me de em jovem ouvir falar sobre o trabalho como um mal necessário. À minha volta, pai, mãe e outros familiares, viviam em função do trabalho e questionava-me se esse era o meu destino. Quando tinha 10 anos e apareço no jantar de natal em casa da minha prima Palmira com uma pasta na mão, espelhava a imagem do mundo que via à minha volta. Todos pautavam a sua vida pelo trabalho e levar aquela pasta expressava o desejo de fazer parte do mundo adulto. Hoje, trabalhando como professor universitário, sinto a tensão entre um trabalho que exige liberdade criativa para inventar coisas novas e um trabalho que exige o tédio da correcção de testes, respostas a emails com solicitações de inúmeras espécies e muitos de nós, trabalhadores do conhecimento, temos a impressão de viver como previa Proust — em busca do tempo perdido. Não é inevitável que assim seja.
«Pelos frutos, pois, os conhecereis.» (Mt 7, 20) — Se a relação com o trabalho se equilibrar com uma vida que não perde o sentido contemplativo da existência humana, pautar a vida pelo trabalho pode expressar o cuidado que temos em garantir que os frutos produzidos provêm de uma árvore boa. Em última instância, essa árvore somos nós.
*Para acompanhar o que escrevo pode subscrever a Newsletter Escritos em – “Tempo 3.0 – Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo” (Bertrand, Wook, FNAC)
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