Modos de interação entre ciência e religião
“P”… [“Pautado…”]
Pautado pelo Tempo
Miguel Oliveira Panão
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Acordamos de manhã e uma das primeiras coisas que fazemos é olhar para as horas. Durante o dia serão inúmeras as vezes que olhamos para o relógio para nos situarmos no tempo. O tempo marcado pelas horas, minutos e segundos possui duas perspectivas: fragmenta; ou orienta a vida. Independentemente de qual a perspectiva que mais sentimos, certo será que, aparentemente, e numa profunda alienação relativa à nossa vontade, a vida é pautada pelo tempo.
Se tivesses de representar o tempo com um desenho, o que farias? A maior parte das pessoas inclina-se para uma seta se pensar na unicidade da direcção e sentido do tempo. Outras poderão desenhar um relógio por reconhecer o carácter cíclico do tempo. Os nossos computadores desenhavam uma ampulheta para alertar que esperássemos enquanto processam algum algoritmo, mas hoje optam pela versão circular quando nos fazem esperar. Raramente nos questionamos que noção de tempo estaremos a representar. Porém, existem três e os Gregos criaram em torno dessas três perspectivas para o tempo, uma irmandade. A irmandade do tempo com o Chronos — irmão do tempo sequencial —, o Kairos — irmão do tempo oportuno e o (esquecido) Aion — o irmão do tempo cíclico ou eterno. Sob qual destas três perspectivas deixamos que a nossa vida seja pautada pelo tempo?
Quem vive para o tempo pauta a sua vida pelo Chronos ou tempo cronológico. Quem vive sem tempo pauta a sua vida pelo Kairos, ou tempo kairológico, a partir das oportunidades que se apresentam. Poucos são os que pensam em pautar a sua vida pelo Aion ou tempo aionológico por compreenderem pouco (ou de todo) como o grande arco da narrativa cósmica, cuja escala de tempo é enorme, poderá alguma vez interagir com a nossa finitude. Porém, será preciso actualizarmos a visão que temos desta irmandade do tempo à cultura hodierna para compreendermos a razão de sermos pautados pelo tempo, sem que isso se torne num stress do tempo cronológico ou vida à deriva do tempo kairológico, mas sintetizando a sequência de instantes com os instantes oportunos, e chegar a uma percepção experiencial do tempo que ofereça uma tal profundidade que sintamos valer a pena que a nossa vida seja pautada por essa percepção.
Nos primórdios da humanidade, a ocasião preenchia a nossa percepção do tempo. O tempo não se media pelos relógios, mas pelos momentos oportunos que a vida suscitava no nosso caminho pela história. Vivia-se no Kairos. Depois, os filósofos gregos quiseram compreender que tipo de experiência era a do tempo e definiram-no como a medida da mudança. Pois, só quando algo mudava é que tínhamos a percepção da “passagem” do tempo. Ao notarem que a mudança era cíclica com os dias e as estações, abriu-se a estrada para que um dia se construísse um instrumento que medisse a mudança: o relógio. A partir desse momento e da possibilidade de sincronizarmos as nossas vidas com os relógios, passámos todos a viver no Chronos. Porém, não sei se alguma vez nos apercebemos de que viver no Chronos teria um preço.
Tudo o que temos como fruto do nosso trabalho foi pago por um preço. Quando trabalhamos para pagar as nossas contas, vivemos literalmente a frase de Benjamin Franklin de que o tempo é dinheiro. Por isso, a vida acelerou-se e pauta-se pelo controlo do nosso tempo na tentativa de poder pagar aquilo que lhe traz algum conforto e realização. Porém, qual o preço real de tudo aquilo que pagamos? Não é dinheiro, mas tempo de vida que gastamos para ganhar esse dinheiro. Perdemos a noção de tempo e quando envelhecemos e olhamos para aquilo que fizemos com o tempo que nos foi dado, poderemos sentir o remorso. O preço de uma vida pautada somente pelo Chronos é o domínio do tempo sequencial sobre as restantes duas percepções do tempo (oportuno e …?).
É urgente actualizarmos a versão que temos da vida pautada pela sequência de instantes. Actualizar para alargar o sentimento da necessidade de gerir cada vez mais e melhor o tempo cronológico. Precisamos de uma versão não restrita à cronologia, nem restrita pela oportunidade da “kairologia”, mas uma versão onde pudéssemos equilibrar as diferentes percepções do tempo. Vi no Aion como tempo profundo essa possibilidade. Uma vida pautada somente pelos tempos cronológico e kairológico é uma vida bi-dimensional. O tempo profundo estende a temporalidade da vida a uma terceira dimensão onde a hora e a oportunidade se harmonizam.
Imagem de Israel Trejo por Pixabay