Seg. Dez 9th, 2024
Modos de interação entre ciência e religião 

“P”… [“Pautado…”]


Pautado pela Pureza

Miguel Oliveira Panão*

Era o dia da Festa da Luz para as crianças do primeiro ano da catequese. Enquanto tocava as músicas que eles gostavam contemplava os seus rostos. A um dado momento dei por mim a sorrir como elas, espelhando-as. Diante de mim tinha aquela fase da vida de cada ser humano que está particularmente pautada pela pureza. Um timbre cuja frequência é a da genuinidade dos pensamentos e dos actos expressa de uma forma particular. Por que razão parece que ao longo do tempo esmorece em nós a pureza que vemos e sentimos numa criança?

Uma vez ouvi que o facto de começarmos a aprender na escola que se pensa de uma determinada maneira, ou faz-se de uma determinada maneira, ou que devemos saber as coisas de uma certa maneira, é a razão que garante o sucesso na vida futura. Porém, o preço pago parece ser a diminuição de uma vida intelectual que antes se pautava pela pureza, não entendida como limpidez ou ser perfeito no modo de ser, mas como intenção transparente. Quando penso neste modo particular de entender a pureza, recordo o efeito do Iluminismo na ciência que levou ao modo como hoje se instrui na escola e a fixação em cumprir programas.

O Iluminismo introduziu o reducionismo metodológico como força transformativa através da tecnologia, levando a pensar que o modo científico de saber que esmiúça cada coisa é a via mais segura para chegar à verdade. Isso repercute-se no modo como “dissecamos” cada problema para compreender as “engrenagens” que o constituem. Se compreendermos a razão de existir de cada componente, a sua funcionalidade e o modo como o seu funcionamento afecta o todo, compreenderemos o todo. Mas a realidade não é bem assim e o resultado na ciência foi a fragmentação do saber. Fez isso em relação às plantas, mas eis que vem Goethe, escritor, artista e cientista natural que propõe algo diferente.

No seu livro dedicado à “Metamorfose das Plantas”, Goethe conta em dezoito capítulos o que observou durante algum tempo enquanto as plantas se metamorfoseavam. Em vez de dissecar a planta, contempla-a e estuda-a a partir do seu próprio ritmo, sem impor qualquer aceleração associada à fragmentação do conhecimento. O que tem tudo isto a ver com uma vida pautada pela pureza?

Durante a nossa infância, e ainda hoje, muitas das actividades destinam-se a preparar as crianças para entrarem no tecido produtivo das nossas sociedades e terem sucesso. A racionalidade do saber impõe-se como valor absoluto, em vez de essa entrar em harmonia com o valor da simples e atenta contemplação, independentemente daquilo que se sabe ou se pensa vir a saber. Aquela contemplação que não força os morangos a crescer para serem vendidos congelados no supermercado, 365 dias por ano, mas a que espera, serenamente, que os morangos cresçam para levarem o tempo que precisarem a desenvolver o sabor tão característico e suculento.

A metamorfose como a entendia Goethe consistia em deixar que as partes se desenvolvessem a partir umas das outras, de acordo com a «possibilidade interna da sua natureza». Estou convicto de que a intenção transparente associada ao genuíno interesse por toda a vida que desabrocha neste mundo é a “possibilidade interna” que o ser humano tem de deixar que a sua vida seja pautada pela pureza.

Será que ficamos menos sensíveis à pureza da intenção transparente porque a vida real possui limites que nos obrigam a aceitar as coisas tal como elas são, parecendo que a genuinidade da pureza, semelhante à de uma criança, revela ingenuidade quando chegamos à vida adulta? Quem tem tempo para observar “serenamente” seja o que for quando, de muitos lados e modos, somos puxados pelas urgências e compromissos, fragmentando e compartimentalizando o nosso modo de ser, pensar e agir?

Quem pauta a sua vida pela pureza, em vez de dissecar a planta para responder à questão de como funciona, deixa que seja a planta a lidar com as suas próprias questões e tenta a partir daí encontrar algumas respostas. Isso significa um envolvimento da nossa parte em relação a tudo e todos os que nos rodeiam que provém mais da contemplação, do que da busca racional de sentido de tudo e todos. Essa busca é boa, sem dúvida. Mas a contemplação é o que nos leva, como a uma criança, a experimentar o deslumbramento diante da realidade tal como ela é. Pois, o fruto da pureza como intenção transparente diante de qualquer realidade que se torna parte da nossa história é a clareza que leva todo o rosto a esboçar um sorriso.


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Imagem de Nguyen Dinh Lich por Pixabay