Qui. Mar 27th, 2025
Metamorfoses | Mudanças interiores que transformam a realidade

Miguel Oliveira Panão*

 

O ser humano não foi feito para ler. Temos pernas e somos feitos para caminhar, mas ler, a não ser que sejamos ensinados, é uma capacidade que jamais conseguiríamos desenvolver por nós próprios. Aliás, o facto do nosso cérebro não estar preparado para ler é a razão da dislexia que faz sofrer muitas pessoas. Porém, de cada vez que lemos, acontece um milagre. Ou seja, acontece algo inesperado e imprevisível: o cérebro muda. Por cada palavra lida, ou cada sentido pensado enquanto lemos um livro, revista ou artigo, acontece uma nova sinapse no cérebro. Uma sinapse é uma conexão funcional entre neurónios do nosso cérebro que permite a transmissão de sinais químicos ou elétricos no sistema nervoso. Alguém poderia imaginar que esses impulsos seriam a fonte de novos pensamentos e ideias originais?

Numa workshop que fiz sobre passar da gestão à experiência do tempo com base em algumas ideias desenvolvidas no meu livro “Tempo 3.0”, perguntei aos jovens quantos livros haviam lido em 2024. Uns disseram um livro, outros dois livros, poucos chegaram aos três e um chegou aos quatro livros. Depois senti algum desconforto. Como reagiriam quando lhes dissesse que já tinha lido 99? Como reage o leitor? É causa de admiração ou (como eu gostaria) causa de inspiração? Por que razão me tornei num ávido leitor? Por achar que essa é a maneira de me tornar mais inteligente? Para adquirir mais conhecimento? Se alguém te perguntar por que razão respiras, o que respondes? Para ser um cantor admirado por todas as pessoas ou para viver? Eis a resposta que habitualmente dou: leio para que a mente respire.

As pessoas, jovens, adultos e idosos, não deveriam ler para serem algo mais do que são, embora seja essa a consequência biológica associada às sinapses que se dão no cérebro quando lemos. As pessoas deveriam ler para que o seu cérebro possa ser usado em vez de perdido. Quem menos lê, continua a pensar e, por isso, a usar de certa forma o cérebro. Porém, quem desenvolve o hábito de leitura está a fazer um bem à sua saúde mental por dar a si mesmo a oportunidade de desenvolver uma percepção diferente do mundo ao seu redor. Gradualmente, a capacidade de ler começa a ligar-se à capacidade de questionar a realidade com que somos confrontados todos os dias, e a procurar mais o sentido e significado de tudo o que acontece connosco ou com o ambiente ao nosso redor.

Poucos poderão estar cientes de que não importa o género do livro que lemos para desenvolvermos o cérebro, a mente e o espírito através da leitura. Pode ser um livro de ficção, de não-ficção ou até um livro técnico. Desde que seja bom e esteja bem escrito, cada frase lida e interiorizada (não memorizada), causa eco em nós despertando a mente para novas percepções e experiências de verdade. Ou não. Isto é, imaginem que leio para adormecer ou porque sou obrigado a ler. Também nas situações em que não estou a retirar nada da leitura, o efeito da leitura sobre mim subsiste?

Mesmo nas situações em que a leitura parece não trazer uma aprendizagem consciente ou imediata, ela não deixa de ter impacto. Ler, mesmo sem grande entusiasmo ou por obrigação, continua a estimular o cérebro, a criar novas conexões neuronais e a manter ativa a nossa capacidade cognitiva. Além disso, o simples acto de processar palavras e ideias, mesmo que não as absorvamos plenamente, é um exercício mental que contribui para manter o cérebro funcional e ágil, como quem treina um músculo, mesmo sem se aperceber do efeito no momento. Por isso, cada leitura, mesmo superficial ou desinteressada, tem um efeito, ainda que subtil.

No livro “Words Can Change Your Brain” (As Palavras Podem Mudar o Teu Cérebro), o médico Andrew Newberg argumenta que as palavras têm um impacto profundo no cérebro humano, moldando não apenas os nossos pensamentos e emoções, mas também a forma como nos relacionamos uns com os outros. A ideia-chave é a de que a escolha consciente de palavras positivas, compassivas e empáticas pode promover conexões neuronais que favorecem o bem-estar, a resiliência emocional e a harmonia nas interações humanas, enquanto palavras negativas podem gerar tensão e bloquear a capacidade de comunicação construtiva. O poder das palavras evidencia o seu papel transformador na nossa mente e no modo como experienciamos o mundo. Todos sonhamos em dar algo de nós próprios para mudar o mundo, mas quantos estão conscientes de que isso começa com pequenas coisas como, por exemplo, ler mais?

Ler mais pode ser a chave para mudar o mundo porque cada livro, cada texto e cada ideia que interiorizamos têm o poder de transformar a nossa percepção da realidade, expandir os nossos horizontes e fortalecer a nossa empatia. Quando lemos, podemos enriquecer o nosso conhecimento, mas acima disso desenvolvemos a capacidade de compreender outras perspectivas, de questionar injustiças e de imaginar soluções inovadoras para os desafios globais que enfrentamos actualmente. Assim, ao alimentar as mentes, tornamo-nos mais curiosos e críticos (positivamente) através da leitura. Como indivíduos (porque indivisíveis) ficamos mais conscientes, informados e preparados para agir de forma positiva e significativa no mundo, acabando por fazer do simples acto de ler um modo de estimular a realização de um futuro mais justo e sustentável para todos. E o tempo para isso?

A maior queixa das últimas décadas é a do tempo que não temos para fazer aquilo que sabemos que nos faz bem, mas falta-nos a paciência para isso. Pode ser desporto ou o mais comum será, precisamente, ler. Até podemos usar a desculpa do nosso cérebro não estar preparado para ler para justificar, com humor, a razão de não termos tempo para ler. Onde há uma razão, há tempo. Basta encontrarmos a razão. Qual poderia ser a razão para nos colocar no caminho de criar um hábito de leitura? Oxalá tivesse uma resposta ou receita. Por isso, lamento a desilusão que possa estar a sentir neste momento. Porém, existe uma máxima que poderá ajudar-nos a encontrar esse caminho: faz tudo como se a tua vida dependesse disso.

A mão calejada procura pacientemente a saliência que permite continuar a escala da parede. Não existe pressa, mas ritmo, porque aquele que escala paredes a solo, ou seja, sem corda, sabe que a sua vida depende da mais pequena saliência. A nossa vida está em risco de cada vez que saímos de casa, mas ninguém se importa muito com isso. Com a diminuição da capacidade de ler, estamos a colocar a nossa vida intelectual em risco, sem nos importarmos muito com isso. O cenário de escalar uma parede rochosa a solo é o que podemos experimentar (se aguentarmos) ao ver o filme de 2018 sobre Alex Honnold que realiza a proeza de escalar os 900 metros do El Capitan no parque de Yosemite nos Estados Unidos, sem qualquer corda.

Para muitas pessoas, começar a criar um hábito de leitura é semelhante a olhar para uma magnânima parede a escalar e sentir a loucura de a subir, pensando que nunca seremos capazes de algo tão intransponível. Porém, existem muitas pessoas que experimentaram a criação desse hábito a partir de momentos difíceis, como, por exemplo, depois de um acidente que as prende a uma cama. Foi assim que aconteceu com Inácio de Loyola que fundou a Companhia de Jesus, os Jesuítas. Também Santo Agostinho se tornou na pessoa que foi quando, num momento de angústia e busca espiritual, ouviu uma voz infantil que dizia: “Toma e lê, toma e lê”. Sentindo-se inspirado, pegou nas Escrituras e leu uma passagem da Carta aos Romanos (13:13-14) que exortava a abandonar a vida de prazeres mundanos e a revestir-se de Cristo. Este momento teve um impacto profundo no seu coração, levando-o a decidir transformar a sua vida e abraçar a fé cristã.

Malala Yousafzai foi uma jovem paquistanesa que se tornou um símbolo global pela educação e pelos direitos das mulheres. Embora Malala tenha arriscado a vida pela leitura e educação, o verdadeiro salvamento veio no sentido de encontrar esperança, propósito e coragem através do conhecimento adquirido nos livros. Apesar de ter sofrido um ataque violento por defender o direito à educação, foi a leitura que a capacitou a enfrentar a adversidade e a liderar um movimento global. A leitura deu-lhe a força para compreender o mundo, articular a sua luta e inspirar milhões, salvando não só a sua vida, mas também a de muitas outras jovens que seguiram o seu exemplo. Em 2014, com 17 anos apenas, Malala recebe o Prémio Nobel da Paz. O que um livro pôde fazer por ela, pode fazer por ti também.


*Para acompanhar o que escrevo pode subscrever a Newsletter Escritos em – “Tempo 3.0 – Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo” (Bertrand, Wook, FNAC)


Imagem de Iván Tamás por Pixabay