Bioética e sociedade
(Parceria com o Centro de Estudos de Bioética)
Luís Manuel Pereira da Silva*
Quem é gerado de um homem e uma mulher não pode ser senão um humano, um filho de humanos, participante, por isso, da condição e da dignidade humanas!
Muitos são, porém, os que se propõem duvidar deste facto insofismável, gerando suspeitas em que se pretende sustentar leis e decisões que ofendem a humanidade que em todos os humanos ‘habita’.
Diante de um humano, uma sociedade que se quer humanizada não deve perguntar-se sobre como legitimar o seu fim ou a sua eliminação, mas preocupar-se em cuidar e criar condições para cuidar.
Esta é a matriz que se consolidou na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que, no seu preâmbulo, é clara na afirmação da anterioridade da dignidade em relação à própria liberdade. Isso mesmo defende, ao afirmar que «o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo» (DUDH, preâmbulo).
Hoje, porém, erguem-se nuvens e sombras sobre esta certeza em que ainda assentam as legislações dos Estados de Direito, que não deixam a norma dependente da arbitrariedade e das vontades oscilantes e manipuláveis, mas as fazem alicerçar-se no reconhecimento da inalienável dignidade que as liberdades devem respeitar.
Face aos sinais preocupantes de indiferença perante o dever de cuidar dos humanos mais frágeis (seja pela sua total dependência das suas mães, na fase intrauterina, seja pela particular vulnerabilidade decorrente da doença, idade ou deficiência), urge revisitar e reafirmar a certeza de que a afirmação da dignidade humana implica a defesa de que cada ser humano é merecedor de proteção, atenção e cuidado, seja qual for a sua condição, sem exceções nem dúvidas.
Urge recordar que a morte é irreversível, enquanto as condições, tantas vezes invocadas para a legitimar, são reversíveis.
Abortar é irreversível. Os motivos que o pretendem justificar são reversíveis, cabendo, por isso, às sociedades enfrentá-los e revertê-los. Justificar o irreversível por motivos reversíveis é inverter a hierarquia de valores que estrutura as sociedades europeias.
Praticar e legitimar a eutanásia é aceitar o irreversível perante condições sempre reversíveis, que deverão ser abordadas e encaradas para que em momento algum se peça o irreversível porque se descurou o reversível.
Executar a pena de morte é irreversível, enquanto a «cura» das feridas decorrentes de um ato injusto é processo possível e sempre do âmbito do reversível.
Todas as formas de morte provocada são atos irreversíveis, legitimados por decisões emotivas e que ocultam a verdade decorrente do reconhecimento da dignidade de cada ser humano, conquista lenta, mas que pensávamos estar consolidada.
Os sinais de retrocesso, nesta matéria, estão diante de todos, quando alguns pretendem levar à carta europeia dos direitos humanos a aceitação do aborto como se fosse um direito, para mais incidindo sobre um ‘bem’ que, por ser gerado por dois, não poderia jamais ser direito de um só; quando alguns forçam a veiculação de ideias de que a eutanásia possa ser ato lícito e respeitador da dignidade que deveria, afinal, tornar-nos invioláveis; quando se vislumbram sinais de progressiva legitimação da prática da morte e da tortura em nome do bem do Estado.
É por isso que os cidadãos, num exercício de verdadeira literacia política e cívica, na iminência das eleições europeias, devem interrogar-se sobre que Europa pretendem construir. Os sinais, tantas vezes sedutores, do individualismo que isola os sujeitos nos seus problemas, deixando nas suas mãos a solitária decisão de se extinguirem, não abrem o futuro, antes o esfumam e anulam. A Europa defendida pelos pais fundadores é, antes, uma Europa da solidariedade em que os problemas de uns são desafios para todos; em que a dor de uns pode ser diminuída pelo contributo de todos; em que o desespero de uns pode ser iluminado pela esperança de todos.
Abortar, eutanasiar, executar quem se opõe reduz a dignidade humana a condição disponível às vontades movidas por circunstâncias móveis e reversíveis. Olhar o outro como um tu, como um igual, como um humano, é a matriz em que assentam as leis de uma sociedade humanizada e humanizadora. Não podem, por isso, leis particulares ofender os pressupostos que a Europa diz defender.
Perante tais desafios, as eleições europeias são oportunidade para os cidadãos eleitores reafirmarem que não somos só ‘contemporâneos sobre um território e um tempo’, mas partilhamos um destino comum, porque todos humanos, todos filhos nascidos de um pai e uma mãe.