Seg. Dez 9th, 2024

 

Luís Manuel Pereira da Silva*

A discussão sobre a disciplina (e a estratégia) de ‘cidadania e desenvolvimento’ regressou à ribalta. A animosidade com que a matéria tem sido abordada evidencia muitos elementos implícitos e muitos pressupostos, pelo que se exige centrar a atenção no que, verdadeiramente, está em causa.

Para contribuir para esta reflexão, proponho-me iniciar com uma parábola.

Uma parábola…

Imagine-se uma escola em que é transmitida, aos professores, a informação de que há uma ou duas crianças de anos iniciais cujos pais se descobriu, recentemente, que não serão quem elas pensaram sempre ser e que essas crianças estão em vias de o descobrir, prevendo-se que seja para breve.

É guardada reserva sobre esta matéria, não sendo conhecida a identidade das crianças com quem tal vai ocorrer.

A escola começa a organizar-se para encontrar formas de minorar os efeitos dessa ‘demolidora’ informação nas respetivas crianças.

Há, porém, um professor que decide criar uma estratégia mais ampla de abordagem.

Propõe-se – diz – diminuir o efeito daquela dolorosa mensagem.

Começa a criar dinâmicas com a sua turma através das quais suscita dúvidas em todas as crianças sobre se os seus pais serão, efetivamente, quem elas pensam ser. Dinâmica após dinâmica, texto após texto, dramatização após dramatização, as dúvidas vão-se avolumando em todas as crianças, ‘garantindo’, assim, – diz aquele professor – que todas perceberão o que o seu ‘ainda desconhecido’ colega irá passar. Com que custo, porém? – Perguntamos nós.

Qual o efeito de tal estratégia? É a estratégia adequada para o problema a enfrentar?

É a única forma de se ser compassivo para com quem vive uma situação dolorosa?

A parábola, aplicada à ‘cidadania e desenvolvimento’

Feitas as devidas salvaguardas, a disciplina de ‘cidadania e desenvolvimento’ que está estreitamente associada à ‘estratégia nacional de educação para a cidadania‘ parte do mesmo equívoco do professor da nossa parábola.

Vejamos porquê.

A estratégia nacional de educação para a cidadania define três grupos de domínios: ‘o primeiro, obrigatório para todos os níveis e ciclos de escolaridade (porque se trata de áreas transversais e longitudinais), o segundo, pelo menos em dois ciclos do ensino básico, o terceiro com aplicação opcional em qualquer ano de escolaridade’ (ver https://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Projetos_Curriculares/Aprendizagens_Essenciais/estrategia_cidadania_original.pdf).

1.º Grupo:

Direitos Humanos (civis e políticos, económicos, sociais e culturais e de solidariedade);

Igualdade de Género;

Interculturalidade (diversidade cultural e religiosa);

Desenvolvimento Sustentável;

Educação Ambiental;

Saúde (promoção da saúde, saúde pública, alimentação, exercício físico).

2.º Grupo:

Sexualidade (diversidade, direitos, saúde sexual e reprodutiva);

Media;

Instituições e participação democrática.

Literacia financeira e educação para o consumo;

Segurança rodoviária;

Risco.

3.º Grupo:

Empreendedorismo (na suas vertentes económica e social);

Mundo do Trabalho;

Segurança, Defesa e Paz;

Bem-estar animal;

Voluntariado.

Outras (de acordo com as necessidades de educação para a cidadania diagnosticadas pela escola e que se enquadre no conceito de EC proposto pelo Grupo).

Uma leitura ‘inocente’ destes domínios poderá não compreender as dúvidas dos que a criticam.

Terá de se ouvir, por um lado, a palavra dos decisores políticos que, por exemplo, em contexto de marchas do orgulho gay, em Lisboa, afirmaram, antes de esta estratégia estar definida, que haveria de se fazer chegar às escolas o que ali se celebrava (declarações proferidas pela então secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Catarina Marcelino, em junho de 2017: “não chega só mudar a lei, é necessário ter educação para a cidadania nas escolas” – ver aqui: https://dezanove.pt/catarina-marcelino-hoje-marchei-com-1093201).

A esta primeira constatação, que evidencia a intenção, terá de se juntar a leitura mais fina dos documentos.

Um olhar já com a inocência mais burilada constatará que a estratégia define domínios como obrigatórios em todos os anos e ciclos, os do primeiro grupo, que, incluindo temas com que todos concordarão, enuncia a ‘igualdade de género’ que, na interpretação de muitos, será o esforço de aproximação de direitos entre homens e mulheres. Seria ótimo!

Mas os ‘guias de educação género e cidadania’, a começar no pré-escolar (ver aqui: https://www.cig.gov.pt/wp-content/uploads/2015/10/398_15_Guiao_Pre_escolar.pdf) não deixam margem para dúvida.

Parece ter sido o professor da nossa parábola a definir a estratégia. Ele não quer, apenas, que se suscite solidariedade e ‘compaixão’ para com quem se encontra em dúvidas sobre a sua condição sexuada. Quer que todos as tenham por igual. Quer gerar a confusão em todos para que, assim, a compaixão de todos seja por solidariedade na desgraça…

Veja-se o que se afirma, na página 12. Cito sem cortes…

«No sentido de clarificar a ideia de que as diferenças observadas entre os sexos não se justificam simplesmente pela pertença da pessoa a uma categoria biológica presente à nascença, mas que resultam sobretudo de construções culturais, Ann Oakley propôs, em 1972, que se efetuasse a distinção entre os termos sexo e género, distinção essa que passou a servir de referência para as Ciências Sociais. Em seu entender, o sexo com que nascemos diz respeito às características anatómicas e fisiológicas que legitimam a diferenciação, em termos biológicos, entre masculino e feminino. Por seu turno, o género que desenvolvemos envolve os atributos psicológicos e as aquisições culturais que o homem e a mulher vão incorporando, ao longo do processo de formação da sua identidade, e que tendem a estar associados aos conceitos de masculinidade e de feminilidade. Assim, o termo sexo pertence ao domínio da biologia e o conceito de género inscreve-se no domínio da cultura e remete para a construção de significados sociais.»

Destaco «os sexos não se justificam simplesmente pela pertença da pessoa a uma categoria biológica presente à nascença, mas que resultam sobretudo de construções culturais».

Fica claro que os géneros serão todos os que forem pensáveis e não os que, biologicamente, forem observáveis e que são a base da organização da sociedade atual (progressivamente a ser revolucionariamente transformada…).

A obsessão dos ‘estereótipos’ e a contradição na própria estratégia

Somado a este pressuposto teórico, que dissolve qualquer ligação entre biologia e género, acrescente-se toda a estratégia marxista da luta contra os estereótipos, no pressuposto de que todo o estereótipo é necessariamente errado, devendo ser erradicado.

Como se a escola não fosse, ela mesma, um lugar carregado de estereótipos (os nerds, os góticos, os dreds, etc.) que, curiosamente, não são enfrentados nesta disciplina, nem abordados pela estratégia nacional. Quantos custos resultam, por exemplo, do estereótipo de que estudar é para ‘ratos de biblioteca’! (Não deveria reservar-se-lhe destacado lugar na referida estratégia?)

Acrescente-se a estas já suficientemente esclarecedoras constatações que é significativo verificar esta incidência obsessiva nos estereótipos de género quando não são enunciados outros que, se a intenção era combater todos os estereótipos, deveriam ser integrados.

Por exemplo, sendo Portugal um país com crise demográfica, quantos estereótipos recaem, com custos, sobre as famílias numerosas (Coitados! Irresponsáveis!); ou sobre os católicos que são a maioria, nas escolas portuguesas (são todos uns pedófilos ou inquisidores!) ou sobre os empresários (só pensam no lucro!) ou sobre os que professam uma religião (padecem de uma patologia e infantilidade!) … ou…

Quer se queira, quer não, os estereótipos fazem parte da nossa condição de seres gregários que, muitas vezes, para se entenderem sem necessitarem de explicitar tudo, têm agendas subentendidas.

Esta obsessão marxista com os estereótipos, para mais apenas de um tipo, gera uma atitude moralista de censura permanente que retira a naturalidade na relação e ficciona todas as dimensões da vida.

E se isto não é ideologia!…

É a sedução de construir um ‘Homem novo’ sem vínculo à realidade, à sua corporeidade, o que, curiosamente, contradiz o documento estruturante da escolaridade obrigatória – o PASEO (Perfil do Aluno – seguramente, também é das alunas! – à saída da escolaridade obrigatória – ver aqui: https://dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Projeto_Autonomia_e_Flexibilidade/perfil_dos_alunos.pdf) – que inclui, entre as suas áreas de competências, ‘a consciência e domínio do corpo’, em que se prevê que uma das competências seja a de «ter consciência de si próprios a nível emocional, cognitivo, psicossocial, estético e moral por forma a estabelecer consigo próprios e com os outros uma relação harmoniosa e salutar.»

Alguém que recusa o seu corpo revela esta competência? E se essa recusa é promovida pela própria estratégia, não é uma estratégia contraditória em si mesma?

Não deveriam ter deixado o professor da nossa parábola com a missão de definir esta estratégia de cidadania. Ele não se compadece dos seus alunos sofredores (que nem sabe quem são!); lança sobre todos o mesmo sofrimento, pensando estar, assim, erradamente, a diminuir a dor dos sofredores.

Ser solidário e ser bom cidadão não é isto. É acolher o outro, mesmo podendo divergir dele e das suas opções, que estão sempre sujeitas a possível escrutínio.


*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de ‘Bem-nascido… Mal-nascido… Do ‘filho perfeito” ao filho humano’, ‘Ensaios de liberdade’ e de ‘Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg’

Imagem de Mohamed Hassan por Pixabay