Sáb. Mar 22nd, 2025

João César das Neves*

 

A habitação é um valor fundamental. O Papa Francisco, desde o início do seu pontificado, tem referido os três Ts, “terra, teto e trabalho” como direitos sagrados da humanidade. Num país rico, como Portugal, existem condições para que esse direito seja amplamente exercido. Com a população em queda, a pressão sobre o parque habitacional é reduzida. Só que, apesar de haver mais casas e menos pessoas, muita gente não consegue residência conveniente. Não existe falta de casas, mas de casas acessíveis em algumas cidades.

O problema é evidentemente estrutural, gerado por conflitos entre poderosos interesses. Há décadas que as leis limitam as rendas, beneficiando os que já têm casa e gerando escassez para a juventude. Além disso, os vários grupos que dominam o setor, das construtoras aos bancos, passando pelas Câmaras e imobiliárias, distorcem-no fortemente. Juntando dificuldades conjunturais, como inflação e alta dos juros, temos a crise há muito preparada.

A forma séria de resolver o problema seria enfrentar abertamente os bloqueios estruturais que há décadas forçam o desequilíbrio, acrescentando apoios para os pobres nos choques recentes. Mas tal afetaria direitos antigos, beliscaria poderes instalados e implicaria fundos escassos. É mais fácil usar a estratégia habitual: primeiro, apresentar uma profusão de pequenas medidas avulsas, de valor e eficácia duvidosa, que mostram a ação e preocupação das autoridades, apesar de pouco resolverem e até complicarem o funcionamento do sistema. Segundo, eleger um inimigo para ficar com as culpas da situação.

A maior parte das medidas do pacote são fiscais, adotando a tradicional abordagem dos remendos legais. Os impostos são, por definição, uma obrigação dos cidadãos, devendo ser simples, leves, gerais e justos. Só que sucessivos governos manifestam a sua preocupação com miríades de problemas concedendo sucessivas exceções de pagamento. Deste modo o sistema fiscal vai ficando uma gigantesca manta de retalhos, com múltiplas regras e contrarregras, privilégios e licenças, ressalvas e isenções, que para mais mudam continuamente, impedindo o equilíbrio geral. Para navegar nesse oceano de casos especiais o cidadão tem de gastar muito tempo e dinheiro.

Este pacote Mais Habitação é especialmente abundante nessas manipulações: aumento da dedução do IMI familiar, redução da taxa especial sobre as rendas, isenção fiscal de mais-valias nas casas vendidas ao Estado, municípios e para pagar empréstimos, benefícios fiscais para obras de casas do arrendamento acessível. Note-se que muitas destas medidas são correções parciais a bloqueios que o próprio Estado criou no passado e continua a praticar. Outra correção de disparate é o fim dos “vistos gold”, pelos quais o Estado vendia a nacionalidade portuguesa para beneficiar apenas a especulação imobiliária. Mas, se alguns impostos são reduzidos, outros são aumentados: os fundos de investimento deixam de ter benefícios na reabilitação urbana.

Nas despesas, sempre cuidadoso com as “contas certas”, o Estado não avança com muito dinheiro para ajudar na solução do problema: dá 250 milhões de euros para habitação a custos controlados e cria uma linha bancária de 150 milhões de euros para os municípios realizarem obras coercivas. Além disso, promete pagar rendas nos casos em que haja incumprimento superior a três meses; mas com forte burocracia, e só até ao máximo mensal 1,5 vezes o salário mínimo nacional.

Existem várias pequenas medidas, mas aquilo que mais atraiu a atenção foi a adoção de políticas opressivas, que atentam contra a liberdade dos cidadãos, do mercado e do desenvolvimento; precisamente o tipo de medidas dirigistas que geraram a situação atual. Esses expedientes, justificados por uma visão maniqueísta da economia, mesmo que possam ter benefícios pontuais, a prazo comprometem o saudável funcionamento da sociedade, desencorajando o harmonioso progresso nacional.

Essas novas políticas podem resumir-se em dois tipos. O primeiro impõe abertamente restrições à decisão dos agentes económicos. São exemplos disso as já citadas obras coercivas, as limitações à subida da renda dos novos contratos, a atualização à inflação nos contratos antigos que ainda persistem e, sobretudo, o arrendamento forçado de casas devolutas. Os direitos individuais de posse passam aqui a ser cilindrados pelas autoridades em nome do bem comum.

O segundo grupo é a profusão de medidas contra o Alojamento Local, erigido em inimigo número um. Este novo setor, potenciado pelas tecnologias digitais, permitiu a muitos pequenos investidores fomentar o turismo e obter boas receitas. Claro que isso incomodara poderosos interesses, que sofriam a concorrência. Em nome da defesa da habitação, o Estado, com a habitual inépcia, ataca frontalmente esses negócios, gerando efeitos imprevisíveis e incontroláveis.

A habitação, um direito fundamental, é assegurado sem problemas em muitos países. Por cá, sucessivas gerações de líderes trabalham intensamente nele, agravando seriamente a situação.


*Professor catedrático de Economia

Imagem de Pete Linforth por Pixabay