Qui. Abr 18th, 2024

70 ANOS DUDH | REFLEXÕES

Direitos Humanos, cultura e liberdade religiosa

João Manuel Duque*

 

Para relacionar os elementos do título, comecemos por uma questão de fundo: os Direitos Humanos pertencem ao âmbito da cultura ou da natureza? Tratar-se-á, portanto, de direto natural ou de direito positivo?

Vistas bem as coisas, diríamos que o seu fundamento é do âmbito da natureza, sobretudo porque esses direitos pretendem universalidade e, por isso mesmo, não se destinam apenas aos contextos culturais que os aceitem ou mesmo que os formulem. A questão, contudo, é mais complexa. Em realidade, a formulação de qualquer direito, mesmo quando se considera universal e, por isso, correspondente à natureza – neste caso, correspondente à natureza humana – é uma formulação inevitavelmente dependente de um processo cultural, que coincide precisamente com o processo de reconhecimento de um direito como direito. Sem uma história cultural determinada, por sinal suficientemente conhecida, nunca a Humanidade teria chegado à formulação dos denominados Direitos Humanos, nem sequer à consciência de que se trata de um conjunto de direitos comuns a todos os humanos, independentemente da sua condição e também do contexto cultural em que se inserem.

Mas, se é verdade que foi preciso um trajeto cultural – identificável e, por isso, cultivável ou não – para chegar ao reconhecimento e formulação, temos que admitir que, ainda hoje, nem todos os trajetos culturais chegaram a esse reconhecimento. Também aí, o cultivo de certo ambiente cultural é fundamental para. É precisamente no cultivo prático e quotidiano de um espírito favorável aos Direitos Humanos que o lugar da cultura, tal como habitualmente a consideramos, se torna significativo. Se determinado percurso cultural – como é o caso do percurso europeu – originou a formulação e sensibilidade aos Direitos Humanos, o cultivo dessa cultura está relacionado com as atividades explicitamente culturais que a alimentam – porque uma cultura alimenta-se de elementos objetivos. Nesse sentido, não pode haver atividade cultural alguma – por exemplo, artística, literária, etc. – sem que se considere a sua pertinência ética, de que os Direitos Humanos são expressão clara. Poderíamos mesmo dizer que o permanente alimento de uma perspetiva que reconheça a sua validade depende da permanente atividade cultural, que constitui o lado objetivo de determinada cultura. Sem esse cultivo permanente de uma determinada interpretação do mundo ela pode vir mesmo a desaparecer, como tem alertado o conhecido pensador alemão Jürgen Habermas.

Ora, é precisamente no eco das suas palavras que se coloca a questão da liberdade. Porque ela é nuclear no contexto dos Direitos Humanos e porque é um dos eixos principais precisamente daquela tradição cultural que lhe deu origem. Através dessa história concreta percebemos, por outro lado, que a dimensão religiosa não lhe é alheia. De facto, foi a tradição judaico-cristã que introduziu na história da Humanidade a própria ideia de liberdade pessoal. Os Direitos Humanos fundamentais estão, por isso, inseparavelmente ligados a essa tradição religiosa e à noção e prática da liberdade. Nesse sentido e partindo desse percurso histórico concreto – do qual o cristianismo é, na atualidade, o herdeiro mais visível e quantitativamente mais significativo – a existência de uma religião sem liberdade ou de liberdade sem religião equivaleria a uma contradição. Desse núcleo é que se desenvolveu uma perspetiva cultural, com grandes realizações em todos os tempos, que desembocou no reconhecimento e na declaração explícita dos Direitos Humanos, os quais incluem, como seu núcleo central, a liberdade religiosa. Esta precisa, contudo, de ser cultivada por realizações culturais que a alimentem, caso contrário pode desaparecer dos nossos horizontes. Exemplos não faltam.

*Professor de Teologia da UCP | Presidente do Centro Regional de Braga da UCP

(Artigo publicado no Diário de Aveiro, em coluna dedicada aos 70 anos da DUDH, da responsabilidade da Plataforma ‘Aveiro Direitos Humanos.)