Um olhar atento ao tempo que flui
Victor Bandeira*
O Padre José Possidónio Henriques nasceu a 18 de Outubro de 1838, no lugar do Pinheiro, em Veiros (Estarreja), que, à época, fazia parte da Comarca da Feira da Diocese do Porto. O seu pai chamava-se Francisco José Henriques e a mãe Mariana Alves Barbosa. Os avós paternos, Agostinho António de Miranda e Maria Caetana Henriques, eram naturais da paróquia de Santa Maria da Murtosa, enquanto os avós maternos, João André Barbosa e Feliciana André Nunes, moravam no mesmo lugar do Pinheiro, da paróquia de S. Bartolomeu de Veiros. O Padre José Possidónio Henriques herdou o nome do padrinho de baptismo, o Reverendo Frei Possidónio José Henriques, da freguesia da Murtosa.
Na Quinta-feira da Semana III da Quaresma, mais precisamente no dia 27 de Março de 1862, é ordenado sacerdote, um mês após a nomeação do novo bispo do Porto, D. João de França Castro e Moura. Durante este ano de 1862, em Veiros, continuavam as obras de restauro da igreja, após o grande incêndio de que fora vítima em Novembro de 1855. Neste mesmo mês de Março de 1862, aguardava-se pelo desenho da planta dos quatro altares laterais que se iriam erguer, pois ainda só existia a nova tribuna e o novo retábulo do altar-mor. Era, assim, ordenado o Padre José Possidónio, numa época em que a Paróquia se tentava reerguer, literalmente, das cinzas.
Poucos dados surgem sobre o seu percurso sacerdotal. Mas, a este clérigo, já com 25 anos de sacerdócio, é-lhe proposto um voto de severa censura numa acta de sessão da Junta da Paróquia de Veiros, datada de 26 de Junho de 1887, devido aos seus “risos descompostos” que ridicularizaram uma ordem do pároco de Veiros, o Padre Manuel da Silva Laranjeira, desconsiderando-o e faltando ao respeito. A título de curiosidade, transcreve-se integralmente esse trecho, a partir do Livro das Actas de Sessão da Junta da Paroquia de Veiros 1887-1900, pela pena do secretário da dita Junta:
“declarou [o pároco, Padre Manuel da Silva Laranjeira] que propunha um voto de censoura aos mordomes da Confraria de S. João Baptista, mas prisipalmente a José Maria, filho de Joaquim Pereira, João, filho que ficou de, António Pereira da Silva, e Evaristo filho de José Affonço da Silva, por terem desobedisido no dia 24 de Junho ao Rev.do Parocho e a elle Presidente, recusando-se a levar na prosissão o pálio mais usado mas desente, e pegando à força no Palio novo, o que deu lugar a que o Rev.do Parocho se recusasse a ir na Procissão, deixando por esse motivo de a haver, caozando isto grande murmurio e extranhesa no pôvo, e proferindo ainda depois elles mordomes palavras de reacção contra o Parocho e Presidente da Junta. Igualmente propoz elle Presidente outro voto de sevéra censoura ao Rev.do Padre Francisco Xaviér d’Assiz Pereira de Mello por instigar aquelles mordomes a que tirassem o pálio novo, rindo-se e escarnecendo das ordens do Parocho e d’elle Presidente, e não menos o Reverendo Padre José Possidónio Henriques que méte a ridículo com seus risos descompostos, ainda as coisas mais dignas de consideração e respeito.”
O Padre José Possidónio Henriques faleceu aos 65 anos, no Domingo, dia 11 de Setembro de 1904, pelas 3 horas da manhã e foi sepultado no alargamento do adro da igreja, tendo sido trasladado para o cemitério actual de Veiros, onde se encontra sepultado.
O seu nome ficou imortalizado em Veiros através da designação da rua em que se situa a quinta da qual era proprietário, tendo sido justificada a denominação da via com o facto de ter lutado contra o analfabetismo, ensinando gratuitamente todos os adultos, homens e mulheres, na sua própria casa.
Actualmente, a casa da quinta, com mais de 250 anos, encontra-se em ruína, mas ainda é visível uma inscrição com a data “1767 ANNOS”. Mais ainda, cimeiro ao portão, até há poucos anos, havia um painel de azulejos azuis com a inscrição: “ESTA QUINTA E DO PADRE JOSE POSSIDONIO HENRIQUES FOI COMPRADA POR ELLE NO ANNO DE 1897”. Ora, o Padre José Possidónio acabou por não usufruir (durante muito tempo) da quinta que adquiriu, vivendo nela cerca de sete anos, já que faleceu relativamente novo. Quando a comprou, já a quinta teria pelo menos 130 anos, a avaliar pela data inscrita na parede lateral voltada para a estrada (1767 annos).
Actualmente, será uma das casas mais antigas de Veiros, e poucas restam deste período relativo ao século XVIII. Outras casas que ainda existem da mesma época eram também pertença de sacerdotes, ou pelo menos, alguns clérigos também aí viveram. Mas, de facto, a Casa da Quinta do Padre José Possidónio Henriques é a que se encontra em maior estado de degradação. Há muitas décadas que não é habitada. Nos últimos anos, o telhado ruiu e, neste momento, a estrutura das paredes não está protegida da erosão provocada pelas chuvas. As janelas e as portas têm molduras em granito, que lhe dão um ar majestoso. As duas portas da frontaria da casa ainda apresentam, cada uma, um escadório com quatro degraus, também em granito, ladeados por dois marcos cilíndricos verticais e esféricos no topo, também em pedra granítica (um dos escadórios já só apresenta um marco granítico na vertical). As janelas e as portas estão arrombadas e pode ver-se o interior. Nele, salta à vista o lambrim, pintado com motivos de várias cores, desde vermelhos a azuis, sobre fundo branco. Nalguns compartimentos da casa, o lambrim é revestido por azulejos, e noutros não apresenta lambrim. Um facto curioso que salta à vista: nalguns compartimentos, de cada lado da janela, existem dois bancos em pedra incrustados na parede, as “namoradeiras”, tal como nas celas dos mosteiros e dos conventos. Por trás da casa, persistem 2 colunas graníticas, que talvez fossem o suporte da chaminé da cozinha, e na frontaria, uma bomba para extrair água e uma japoneira (camélia), que é testemunha de quem passou por aquela casa.
Quantas e quantas casas, com histórias semelhantes, não estarão nesta mesma situação?! Quantos sacerdotes dedicados, após viverem a sua Páscoa no Céu, não terão visto os alçados das casas que os abrigaram, ruírem, serem abandonados, vandalizados ou grafitados?! A numeração (1767 ANNOS), pintada no alçado voltado para a estrada, já está erodida e em fragmentação, e, em breve, desaparecerá da parede da casa, acompanhando a sua ruína. É pena que os pertences desta história de vida do Padre José Possidónio Henriques, grande pedagogo da freguesia de Veiros, e que deu nome à rua que ali passa, termine desta forma, em ruína e fragmentada em pedaços de alvenaria!
Bibliografia
Bandeira V. (2018). Memórias da Igreja de São Bartolomeu de Veiros – Chão Sagrado. Tempo Novo Editora. Aveiro. 461 pp. [ISBN: 978-989-99806-9-3].
Junta de Parochia (1900). Livro das Actas de Sessão da Junta da Paroquia de Veiros 1887-1900.
Pereira, M. (2017). Beduído e Veiros – Património Construído. Junta de Freguesia da União de Freguesias de Beduído e Veiros. 104 pp. [ISBN: 978-989-20-7745-1].