Um olhar sobre o património | A pretexto dos 600 anos da catedral
António Leandro*

Lisboa, 9 de dezembro de 1392. A Rainha consorte, esposa de D. João I, D. Filipa de Lencastre, nascida em Leicester, Inglaterra, em março de 1360, dava à luz o seu terceiro filho, de seu nome Pedro. D. Filipa de Lencastre era filha de João de Gante, 1º Duque de Lencastre, e de Branca de Lencastre e era neta, por via paterna, do Rei Eduardo III de Inglaterra (fundador da Ordem de Jarrateira em 1348) e de Filipa de Hainault. Nasceu em março de 1360, desconhecendo-se o dia exato, e faleceu em Lisboa a 19 de julho de 1415 de peste bubónica, presumivelmente no Mosteiro de Odivelas, poucos dias antes do arranque da expedição a Ceuta. Aos dezoito anos recebeu a distinção de pertencer à Ordem de Jarrateira. Por influência do apoio de Inglaterra a Portugal, aquando das Batalhas com Castela pelo trono português, nomeadamente as ocorridas no ano de 1385, como a de Trancoso (29 de maio) e a de Aljubarrota (14 de agosto), D. Filipa de Lencastre casou com D. João I de Portugal, primeiro rei da segunda dinastia após a crise dinástica de 1383-85, no ano de 1387 na catedral da cidade do Porto. Encontra-se sepultada na Capela do Fundador no Mosteiro de Santa Maria da Vitória, na Batalha, panteão da Dinastia de Avis, no túmulo duplo do casal, ao centro da capela, sob o fecho da elegante e vibrante abóbada estrelada.
O filho Pedro terá sido, provavelmente, o mais dado às letras e artes, o mais culto e o de mais nobre formação da família que ficaria conhecida na História de Portugal, por alta criação de Luís de Camões, como Ínclita Geração: “… Foy Pryncype de grande conselho, prudente, e de viva memoria, e foy bem latinado, e assaz mistyco em ciencias e doutrinas de letras, edado muyto ao estudo…”[1], segundo as palavras do cronista Ruy de Pina. Contudo, para além destas caraterísticas, foi ainda reconhecido como “… contemplativo, cavalheiresco, benigno, prudente, sábio. Era louro. Tinha nas veias o sangue da mãe, e no rosto assinalada a ascendência”[2], assim o descreveria, bem mais tarde, um dos mais importantes pensadores da apelidada “Geração de 70”, Joaquim Pedro de Oliveira Martins numa época, segunda metade do século XIX, em que se começa a recuperar a memória do Infante D. Pedro, duque de Coimbra.
Após uma cuidada educação, aplicada a todos os filhos, o Infante D. Pedro tomou parte na expedição e conquista da cidade africana muçulmana de Ceuta, em 1415, ao lado dos seus irmãos, Duarte e Henrique, sendo todos eles, logo de imediato, sagrados cavaleiros por seu pai, D. João I, cognominado O de Boa Memória. No regresso, em Tavira, o infante D. Pedro foi intitulado Duque de Coimbra[3], “… tendo-lhe sido, então, atribuídas as terras e povoações na região do Baixo Mondego e a faixa litoral até Aveiro”[4], ainda que não as recebesse todas de uma vez numa só outorga. Convém ressalvar que algumas terras daquela faixa costeira nunca chegaram a ser sua pertença, mais especificamente os lugares situados logo a norte do Cabo Mondego, como é o caso de Quiaios, que pertenciam aos cónegos regrantes de Santo Agostinho do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, apesar das insistentes tentativas do infante para as adquirir[5]. Explica-se, assim, facilmente os posteriores títulos oficiais, entre outros, concernentes com o seu estatuto de terratenente daquela faixa costeira de: Senhor Mira, Senhor de Montemor, Senhor de Buarcos e Senhor de Aveiro, numa longa extensão de território com forte ligação ao mar, talvez, deste modo, se dilucidando as suas políticas de promoção do comércio, de defesa da exploração da costa africana pelo mar e ainda de outras atividades marítimas.

É bastante provável que, nominalmente, o senhorio de Aveiro não lhe tenha sido entregue de imediato no regresso da vitoriosa expedição a Ceuta, mas terá sido com certeza em data anterior ao ano de 1431 e, possivelmente, apenas após o regresso da sua prolongada viagem pela Europa, ou seja, entre 1428 e 1431. Humberto Baquero Moreno afirma que “a última doação que seu pai lhe fez é de 1432. Abrangia todas as ilhas e lezírias da foz de Aveiro, compreendendo todas as rendas que lhe pertenciam”[6]. E o seu território continuou a aumentar no reinado do seu irmão, D. Duarte, o qual reinou de 1433 a 1438, que lhe outorgou os direitos “… do couto de Avelãs de Cima e de Ferreiros, dos reguengos de Quintela e de Arcos, dos lugares de Ílhavo e da vila de Milho e dos casais de Sá…”[7], estas últimas localidades com clara ligação à navegável Ria de Aveiro e, de forma indireta, ao mar, tendo em conta a formação costeia do século XV. No seguimento destas outorgas, D. Afonso V, seu sobrinho, em 1448, logo após o fim da regência de D. Pedro, entrega-lhe o Senhorio de Aveiro por doação perpétua, apesar de D. João I já ter feito anteriormente a doação de forma vitalícia[8]. Provavelmente, esta alteração tenha sido uma tentativa de demonstração do poder real por parte de D. Afonso V ao seu tio, conhecidas que eram já os seus profundos desentendimentos.
Nesta última, então, vila demonstrou grande preocupação pelo seu desenvolvimento, como é o caso da continuação e conclusão das obras da cintura de muralhas, anteriormente iniciadas pelo seu pai[9], e modernização cultural, ainda que dentro dos parâmetros teológicos cristãos, como é exemplo do estabelecimento, por sua vontade, da primeira ordem clerical no Mosteiro de Nossa Senhora da Misericórdia, atual catedral, entregue aos frades da Ordem de São Domingos, em 1423. O próprio infante comprou diversos terrenos para a edificação do novo cenóbio[10]. E foi ainda por pedido de D. Pedro ao rei, seu irmão, D. Duarte que Aveiro obteve autorização para a realização de uma feira franca em 1434[11], expressando a vontade da população, por um lado, e, por outro, a preocupação do seu senhor com o desenvolvimento de Aveiro[12]. Todavia, esta preocupação não foi exclusiva para com a urbe de Aveiro. Também os feirantes de Coimbra tiveram preocupações similares apelando, nas Cortes de Lisboa em 1439, ao infante alguns pedidos, nomeadamente a autorização para alterar o período em que decorreria a sua feira, os quais estariam relacionados com a feira franca de Montemor[13]. Durante a sua regência, a 12 de julho de 1444, D. Pedro aceitou os pedidos dos Homens-bons da, então, vila de Guimarães para conceder as regalias antes solicitadas relativas aos impostos tributados sobre os produtos comercializados na feira anual que tinha a duração de quinze dias[14], demonstrando, por um lado, a sua aposta no desenvolvimento do comércio e, por outro, o enlevo e devoção que seu pai já tinha também expressado pela Nossa Senhora da Oliveira de Guimarães quando lhe prometeu oferecer o seu loudel no caso de vitória em Aljubarrota, promessa que cumpriu[15].
É de todo importante para a história do senhorio de Aveiro esclarecer que esta urbe já tinha sido, desde o século X, mas especialmente desde a centúria de duzentos, senhorio repartido por outros membros da alta nobreza, como são os casos dos filhos e até netos de D. Pero Afonso e D. Urraca, os quais acabaram por doar as suas partes ao Mosteiro de Celas de Coimbra e ao Mosteiro de São João de Tarouca. O último senhor laico, deste ramo, que se conhece foi D. Pero Anes Gago, mas nos inícios do século XIV regressou às mãos da coroa por intermédio do rei D. Dinis. Porém, a vila voltaria a conhecer outros senhores devido à doação de D. Fernando à sua esposa D. Leonor, voltando a comunidade a sentir a mesma instabilidade jurídico-financeira do século XIII. Conquanto, a nova dinastia avisina seria fulcral para a estabilização administrativa e consequente crescimento, pois, em 1407, passaria, de novo, para a coroa por intervenção de D. João I[16] e, passados alguns anos, o mesmo monarca entregaria, como acima já afirmámos, ao seu filho, o infante D. Pedro, Duque de Coimbra, Senhor de Aveiro e fundador do Mosteiro de Nossa Senhora da Misericórdia de Aveiro.
Imagem 1: Bandeira do Infante D. Pedro (retirada da Wikipédia)
Imagem 2: Estátua em bronze do Infante D. Pedro em Mira da autoria do escultor André Alves, inaugurada a 13 de dezembro de 1996. Fotografada por Jorge Neves em 2005
[1] PINA, Ruy – Chronica do senhor Rey D. Affonso V. Lisboa: Academia Real das Sciencias; 1901, p. 433.
[2] MARTINS, Oliveira – Os filhos de D. João I. Lisboa: Editora Ulisseia; 1998, p. 89.
[3] DIAS, Pedro – “Escultores e pintores que trabalharam para o Infante D. Pedro, Duque de Coimbra”, em Biblos, vol. LXIX. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra; 1993, p. 491.
[4] ERMITÃO, José N. R. – O Infante D. Pedro das Sete partidas. Compulsado em http://cfidp.esgc.pt/file.php/1/Microsoft_Word_-_INFANTE_D_PEDRO.pdf, p. 1.
[5] MARQUES, Alfredo Pinheiro – A maldição da memória do Infante D. Pedro e as origens dos Descobrimentos Portugueses. Figueira da Foz: CEMAR-Centro de Estudos do Mar; 1994, p. 92.
[6] MORENO, Humberto Baquero – A Batalha de Alfarrobeira. Antecedentes e significado histórico. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra; 1979, p. 258.
[7] MORENO, Humberto Baquero – A Batalha de Alfarrobeira. Antecedentes e significado histórico… p. 258.
[8] SILVA, Maria João Violante – Aveiro Medieval. Aveiro: Câmara Municipal de Aveiro. 1991, p. 77 e MORENO, Humberto Baquero – A Batalha de Alfarrobeira. Antecedentes e significado histórico… p. 261.
[9] Sobre a questão de quem iniciou a construção da muralha, tradicionalmente atribuída a D. Pedro, atribuição com a qual não concordamos consultar LEANDRO, António Cruz – “O Mosteiro de Nossa Senhora da Misericórdia”, em Memórias gráficas dos antigos conventos e mosteiros de Aveiro. Direção de Francisco Messias Trindade Ferreira e Porfírio António Correia. Aveiro: Edição do Arquivo Distrital de Aveiro; 2017, p. 48 e SILVA, Maria João Violante – Aveiro Medieval… p. 13. Esta autora prova que a iniciativa da construção das muralhas foi iniciativa de seu pai, D. João I, em data anterior a 1413.
[10] Arquivo da Universidade de Coimbra – Convento de São Domingos, “Livro de Lembranças de Missas”, fl.2 citado em LEANDRO, António Cruz – “O Mosteiro de Nossa Senhora da Misericórdia” … pp. 52 e 53.
[11] SILVA, Maria João Violante – Aveiro Medieval… p. 76.
[12] SILVA, Maria João Violante – Aveiro Medieval… pp. 76-79. Esta autora elenca um conjunto de ações empreendidas por D. Pedro demonstrativas do crescimento do senhorio de Aveiro.
[13] COELHO, Maria Helena da Cruz – A feira de Coimbra no contexto das feiras medievais portuguesas. Coimbra: Edição do INATEL – Delegação de Coimbra; 1993, pp. 25-27.
[14] Arquivo Municipal Alfredo Pimenta – Coleção de Pergaminhos da Câmara Municipal, “Carta do Infante Dom Pedro sobre a feira na vila de Guimarães”. Compulsado em: https://archeevo.amap.pt/details?id=123544&detailsType=Description
[15] O loudel de D. João I encontra-se no Museu Alberto Sampaio em Guimarães.
[16] SILVA, Maria João Violante – Aveiro Medieval. pp. 64-75. Nestas páginas a autora particulariza os senhores e esmiúça as constantes alterações de senhores do século XIII ao XV.