Sex. Mar 28th, 2025

Um olhar sobre o património | A pretexto dos 600 anos da catedral 


 

António Leandro*

 

A Ordem dos Pregadores, também conhecidos como frades de São Domingos, chegou a Aveiro, como já vimos anteriormente, no ano de 1423 pela mão do Duque de Coimbra e Senhor de Aveiro, o Infante D. Pedro, filho de D. João I e D. Filipa de Lencastre, um dos infantes da Ínclita Geração. Poucos anos volvidos, em 1462, fundava-se, mesmo ao lado do masculino, o mosteiro feminino, prova da importância granjeada pelos monges dominicanos na urbe.

Em 1418, devido a Portugal ter apoiado o Vaticano no Cisma do Ocidente, Martinho V, o mesmo que viria a conceder o Breve para a fundação do Convento de Nossa Senhora da Misericórdia de Aveiro[1], tinha criado a Província de Portugal, separando-a da espanhola que apoiara Avinhão, sendo nomeado para primeiro Provincial Dominicano de Portugal Mestre Frei Gonçalo[2]. Este longo diferendo papal não foi muito benéfico para a Ordem dos Pregadores porque dividiu-a quanto às posições a apoiarem. O francês Elias Raymond era o Mestre Geral dos Pregadores (1367-1380) quando se deu o Cisma em 1379 e, apesar de ter sido ordenado Vigário-Geral em 1365 e, posteriormente, Mestre Geral da Ordem em 1367 pelo Papa Urbano V (Papa entre 1362 e 1370)[3], Elias Raymond esteve ao lado do seu país, apoiando o papado de Avinhão, posição tomada também por todos os seus sucessores consoante o apoio dado pelo seu país de origem. Elias Raymond foi Mestre Geral da Ordem dos Pregadores entre 1367 e 1380, sendo seu predecessor Raimundo de Cápua, o qual foi Mestre Geral entre 1380-1399. Todavia, logo após a eleição de Raimundo, Elias foi também eleito Mestre da Ordem dos Pregadores pelos seus confrades apoiantes de Avinhão, ou seja, do Antipapa Clemente VII (1378-1394). Assim, a ordem foi obedecendo ou ao Antipapa, Clemente VII, ou ao papado romano, situação mantida até ao término da separação em 1417, mas as dúvidas que se tinham instalado por toda a cristandade também se fizeram sentir nas diversas províncias dominicanas, verificando-se constantemente uma divisão e uma discordância entre os provinciais com a linha tomada pelo Mestre Geral[4].

O século XV transportaria ainda a questão do Grande Cisma do Ocidente, mas Raimundo de Cápua, diretor espiritual de Santa Catarina de Siena, Mestre Geral entre 1380 e 1399, ano da sua morte, esteve ao lado de Urbano VI de Roma (1378-1389), o que permitiu uma célere recuperação da ordem, ainda que se tenham sentido várias divergências entre os Pregadores, como acima se procurou demonstrar. O Mestre Geral da Ordem começou a residir na Cidade Santa e quando se deu o fim do Cisma encontrava-se no cargo de Mestre Geral o florentino Leonardo Dati (1414-1425) que tinha sido igualmente obediente a Roma.

Nos primórdios desta centúria a ordem começou a usar um brasão: “era o «Escudo da Capa», representando a capa preta do hábito aberta num campo branco. O cão de São Domingos era muitas vezes colocado abaixo da capa”[5]. Incumbia-se agora a tarefa de recuperar a ordem o que pareceu algo dificultoso porque se a forte presença de renovadores que viram as suas vidas serem reconhecidas pela santidade, tal como Raimundo de Cápua e Catarina de Siena, entre outros, contribuíram para uma renovação interna da vasta comunidade religiosa, por outro lado “… a restauração das ordens mendicantes causou uma revivescência da pregação popular, o que deu origem às veementes explosões de fervor e penitência que marcaram tão poderosamente a vida religiosa do século XV”[6], próprias de um período de crise, entenda-se profunda transformação, de valores morais e espirituais, como foi o caso da época final da Idade Média. As províncias dominicanas conheceram uma profunda renovação de forma a não permitir o desleixo em qualquer convento, não só apostólico e evangélico, mas também ao nível do estudo e conhecimento teológico. Sentia-se uma pressão interna maior porque vivia-se uma época de grande instabilidade e de crise, o que desencadeava uma conflitualidade de fé e paganismo nos espíritos humanos de então e as ordens mendicantes, e também o clero em geral, eram alvo de motejos, o que obrigou a um maior movimento da prática canónica da regra dominicana da Visitação, por forma a aplicar uma disciplina rigorosa como aquela que tinham conhecido nos alvores da ordem. Em Portugal os dominicanos preocupados com o desenvolvimento do renovado pensamento clássico filosófico, e consequentemente, teológico/antropológico, que se expandia pela Europa, fundaram, em 1517, o colégio de São Tomás junto ao seu convento em Lisboa, o qual não estaria incorporado na Universidade e destinar-se-ia somente como estudo geral para as comunidades dominicanas[7]. Os estudos e as novas ideias foram-se aprofundando e as necessidades de formação de igual forma, obtendo-se resposta que culminaria na fundação do primeiro colégio universitário dominicano, a 16 de Outubro de 1539[8], expressando um vanguardismo em relação às decisões emanadas do Concílio de Trento (1545-1563), convocado pelo Papa Paulo III.

Estávamos num século de renovação eclesiástica e espiritual, mas também de renovação política, social, económica e científica porque o Mundo alargava-se a outros contornes e a arcaica visão fantasmagórica da envolvente para lá do continente europeu despedaça-se: “… os Descobrimentos não foram apenas uma fonte da cultura vivida de alguns estratos do povo português. Para os intelectuais ligados às coisas do mar, foram também um estímulo poderoso de reflexão e rectificação de ideias feitas no decurso dos séculos. E a sua influência foi mais longe ainda, orientando os espíritos no sentido das coisas e do conhecimento científico independente da escolástica e até do próprio humanismo”[9]. Todas as contestações humanistas dos arquétipos medievais ganham consistência e vigor com os contactos proporcionados pelas viagens marítimas e uma revolução cultural e ideológica é iminente, obrigando a novas definições sociais, religiosas e culturais, ou seja teológicas e antropológicas, mas “a tradição científica e filosófica desde os pré-socráticos a São Tomás de Aquino não constitui, para o pensamento científico e filosófico do século XVI, um museu do passado mas sim, bem pelo contrário, um imenso tesouro do presente. Esta situação em que o passado é registo de presença presente e não matéria de história passada ocorre porque em última instância, o horizonte epistémico destas idades (Antiguidade, Medievalidade e Renascimento) é, no essencial, o mesmo…”[10]. Os dominicanos  acompanharam esta (r)evolução humanista e muitos dos seus estudiosos contribuíram para o desenvolvimento de várias ideias que se compunham: os estudos sobre a esfericidade da Terra em Salamanca iam ao encontro das ideias de navegação de Cristóvão Colombo; em Itália foram reunidas grandes coleções bibliotecárias e construídas enormes bibliotecas conventuais dominicanas e Savonarola incutiu o estudo de outras línguas como o hebreu, o árabe e o caldeu[11] à imagem do advogado na obra O Cortesão de Baltasar Castiglione. Por outro lado, os Pregadores tentaram adaptar uma nova liturgia e conceção religiosa no seguimento da renovação quatrocentista, fundando confrarias dedicadas a Jesus, a Maria, como é claro exemplo a Nossa Senhora do Rosário, criação domínica, e a São Domingos e desenvolveram o cântico dos hinos marianos[12]. Com o advento do humanismo, bem marcado em muitos países europeus, os dominicanos começaram a decair, mas com perseverança e empenho adaptaram-se à nova sociedade e cosmogonia, nomeadamente a partir do Concílio de Trento. Conquanto, a caraterística da pregação e da pobreza, após algumas divergências, decaiu a favor do apostolado intelectual.


Imagem: Brasão de D. Pedro sob o Sol Dominicano

[1] Sobre esta temática desenvolveremos numa futura publicação sobre a fundação do mosteiro.

[2] Frei Luís de Sousa, História de São Domingos, Porto, Lello e irmãos, 1977, p. 921. Sobre a separação e criação da província de Portugal este autor também nos dá um relato, mas estamos em desacordo com as datas propostas porque aquele parte do ano de 1415 como sendo o término do Cisma do Ocidente e na realidade apenas houve consenso entre apoiantes do Vaticano e de Avinhão no ano de 1417.

[3] Urbano V é considerado Papa Romano apesar de ter residido em Avinhão, ainda antes do início do Grande Cisma do Ocidente. O Papa que provoca o cisma é Urbano VI (1378-1389) por se recusar a viver e reconhecer Avinhão como sede papal. A restauração de Roma como Cidade Santa e sede papal tinha já sido tomada pelo seu antecessor Gregório XI (1370-1378) com clara influência da domínica Santa Catarina de Siena (1347-1380).

[4] William A. Hinnebusch, Breve história da Ordem dos Pregadores, Porto, Secretaria da Família Dominicana, 1985, pp. 86-87.

[5] William A. Hinnebusch, Breve história da Ordem dos Pregadores, Porto, Secretaria da Família Dominicana, 1985, p. 108.

[6] Johan Huizinga – O declínio da Idade Média. Braga. Editora Ulisseia. 1996. p. 187.

[7] José Sebastião da Silva Dias – “Os dominicanos e a filosofia em Portugal no século XVI”. in Actas do II encontro sobre história dominicana. Vol. III, Tomo 2. Porto. Arquivo Histórico Dominicano Português. 1984. pp. 197-198.

[8] Manuel Lopes de Almeida – “Méritos e deméritos da história dominicana em Portugal. in Actas do I Encontro sobre história dominicana. Porto. Arquivo Histórico Dominicano Português. 1979. Vol. II. pp. 20-21.

[9] José Sebastião da Silva Dias – Os Descobrimentos e a problemática cultural do século XVI. Lisboa. Editorial Presença. 1988. 3ª edição. p. 77.

[10] Luís Filipe Barreto – Caminhos do saber no renascimento português. Estudos de história e teoria da cultura. Lisboa. Imprensa Nacional Casa da Moeda. 1986. p. 27

[11] William A. Hinnebusch, Breve história da Ordem dos Pregadores, Porto, Secretaria da Família Dominicana, 1985, pp. 121-123.

[12] William A. Hinnebusch, Breve história da Ordem dos Pregadores, Porto, Secretaria da Família Dominicana, 1985, pp. 56-57.


*Licenciado em História de Arte pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra: Mestre em Património e Turismo pela Universidade do Minho; Professor; Formador de professores na área da História de Arte; Investigador de história e património local, nomeadamente de Arte Sacra, escrevendo assiduamente artigos para diversas publicações, como as revistas Terras de Antuã, Albergue e Cucujanis.