Um olhar sobre o património | A pretexto dos 600 anos da catedral
António Leandro*
Os dominicanos apropinquaram a Portugal no ano de 1217 através de Frei Sueiro Gomes (o qual foi um dos iniciadores da comunidade e primeiro Provincial da Ordem na Península Ibérica[1]) enviado por Domingos de Gusmão para a Hispânia, tal como Frei Pedro de Madrid, Frei Miguel de Ucero e Frei Domingos, “O pequeno”[2], e logo no ano seguinte parece ter fundado um convento na airosa Serra de Montejunto, nas proximidades de Alenquer[3]. Todavia, não há consenso quanto à localização do primeiro cenóbio, porque António Rosário afirma que o primeiro convento dominicano foi fundado na cidade de Santarém nesse mesmo ano de 1218[4], o que de alguma forma está mais de acordo com a caraterística de comunidade religiosa urbana porque Santarém, seria, à época, uma das cidades mais populosas de Portugal. Por outro lado, Sousa Costa afirma que o primeiro mosteiro foi fundado em 1217 próximo de Alenquer e transferido para Santarém em 1225[5]. Quanto ao segundo mosteiro da ordem, já com certezas mais firmes, foi levantado na cidade de Coimbra, encontrando-se já construído no ano de 1227[6]. Todavia, os frades dominicanos já pregavam e já se tinham humildemente instalado na cidade do Mondego desde 1218[7], pois foi neste mesmo ano que o Bispo de Coimbra, D. Pedro Soares (o mesmo que denunciou D. Sancho I à Cúria Papal de este monarca se aconselhar com uma feiticeira albergada na sua própria corte) autorizou a Frei Sueiro Gomes a prédica aos dominicanos nas áreas sob sua jurisdição, permitindo que repreendessem os excessos aí cometidos[8]. A expansão dos pregadores e o combate às heresias e excessos levou à concepção dos decretos laicales e abriu hostilidades entre o Provincial dos dominicanos e o rei D. Afonso II que proibira os Estatutos ao frade dominicano[9] porque o monarca, querendo centralizar o seu poder, apoiava-se em juristas e notários de forma a combater o poderio dos senhores feudais, essencialmente a Norte do Mondego, e dos senhorios eclesiásticos, não querendo reconhecer a lei canónica e pontifícia como dominante à régia e, de facto, “… não se pode esquecer que os principais protagonistas destas lutas eram canonistas célebres e que, por isso mesmo, estavam dispostos a lutar até ao fim pela aplicação em território português de muitas práticas canónicas que se difundiram mais cedo, mas também mais lentamente, noutros territórios da Cristandade”[10], mas, por outro lado “… compreendendo-se que o rei reagisse desfavoravelmente à doutrina curialista e não tolerasse o exercício, por parte da autoridade eclesiástica, de poderes temporais que podiam ir desde a punição até ao confisco dos bens”[11]. Conquanto, a importância social e o apreço que as comunidades civis começaram a nutrir por frades dominicanos culminou em se fazer sentir no seio da família real, como se pode verificar nos reinados de D. Afonso III e de D. Dinis e de forma bastante mais vincada na Ínclita Geração. Anteriormente, ainda no reinado de D. Sancho II tinham sido fundados os mosteiros das cidades do Porto, em 1238, e de Lisboa, no ano de 1241.
À chegada destes frades não deve ter sido alheia as “Cruzadas do Ocidente” porque, no ano da vinda para o nosso território destes novos frades, seria alindada a Cruzada para libertação definitiva de Alcácer do Sal do jugo dos infiéis, no reinado de D. Afonso II, falecido em 1223, com relevante importância dos frades cavaleiros da Ordem de Santiago de Espada. Os dominicanos, bem como os franciscanos, tinham como uma das suas principais tarefas a evangelização, nomeadamente das comunidades urbanas, apresentando-se o sul do atual território nacional, então sob domínio muçulmano, como uma zona desejável para aquelas duas ordens mendicantes porque os seus centros urbanos eram populosos e detinham um desenvolvimento superior à região cristã “… com actividades económicas que poderíamos classificar de mais modernas do que as do Norte, isto é, com uma economia mais produtiva e de trocas mais intensas…”[12], pois se inicialmente as ordens mendicantes se excluem das santas ações bélicas, continuando o seu caracter apostólico e missionário, posteriormente o sentido de Cruzada “… é reabsorvido e transformado por duas grandes instituições nascentes que respondem às necessidades duma nova sociedade: a Ordem dos Pregadores e a Ordem dos Frades Menores”[13]. Entre os anos de 1271 e 1278, no reinado de D. Afonso III, erigiu-se o mosteiro de São Domingos em Guimarães, urbe que durante longas centúrias seria um dos mais importantes centros económicos e de poder, rivalizando com a sede episcopal bracarense. No ano de 1298, durante a vigência do Rei Poeta, D. Dinis, sabemos que o convento para os frades pregadores começa a ser levantado na cidade de Évora, prova suficiente que esta jovem congregação religiosa procurava os centros urbanos, cidades ou vilas, como local privilegiado para a sua pregação. Durante os três séculos seguintes a disseminação dos pregadores fez-sentir por todo o país.
É neste contexto de novas carências e de reiteração apostólica e espiritual que “…em diversos centros urbanos, implantaram-se estas duas Ordens Mendicantes, que muito contribuíram para a renovação espiritual das populações, através da pregação e do seu testemunho evangélico de pobreza, obediência e castidade, não deixando de concitar a animosidade de outras instituições, em especial do clero secular…”[14]. Rapidamente foram-se levantando mais cenóbios dominicanos e a sua importância foi crescendo, patente na entrega do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, na Batalha, por D. João I àqueles religiosos, mas Frei Vicente de Lisboa, confessor do próprio rei e João das Regras, bastante amigo daqueles frades, devem ter exercido a sua influência. Os frades dominicanos vimaranenses fundariam, em 1424, um convento em Vila Real. No ano anterior, em 1423, chegaram a Aveiro pela mão do Duque de Coimbra e Senhor de Aveiro, o Infante D. Pedro, filho de D. João I, erigindo o seu cenóbio no espaço que viria a dar lugar à atual catedral aveirense. Pouco depois, em 1462, fundar-se-ia o mosteiro feminino, espaço que dá hoje luz ao Museu de Santa Joana, sendo as duas primeiras comunidades religiosas regulares da então vila de Aveiro.
Imagem anexa: Brasão da Ordem de São Domingos na Capela de Nossa Senhora dos Prazeres na atual Sé de Aveiro
[1] Francisco da Gama Caeiro – “Os primórdios dos frades pregadores em Portugal. Enquadramento histórico-cultural”. in Actas do II encontro sobre história dominicana. Vol. III, Tomo 1. Porto. Arquivo Histórico Dominicano Português. 1984. p. 161.
[2] António Rosário, “Primórdios dominicanos em Portugal”, em separata Bracara Augusta, vol. XVIII/XIX, n.º 41/42, Braga, 1965, p. 7.
[3] Frei Luís de Sousa, História de São Domingos, Porto, Lello e irmãos, 1977, p. 49.
[4] António Rosário, “Primórdios dominicanos em Portugal”, em separata Bracara Augusta, vol. XVIII/XIX, n.º 41/42, Braga, 1965, pp. 17-19.
[5] António Domingues de Sousa Costa – s.v. “Dominicanos”. in Dicionário de História de Portugal, direcção de Joel Serrão, vol. V, Porto, Livraria Figueirinhas, 1985, p. 334. José Marques – “A evolução religiosa”. in Nos confins da Idade Média. Arte portuguesa dos séculos XII-XV (catálogo). Coordenação de Maria Antónia Pinto de Matos. Porto. Secretaria de Estado da Cultura/Instituto Português de Museus. 1992. p. 61 segue esta mesma ideia.
[6] O extinto edifício do Mosteiro de São Domingos em Coimbra é hoje o Shopping Sofia na rua com o mesmo nome.
[7] Maria Helena da Cruz Coelho e João José da Cunha Matos, “O Convento Velho de S. Domingos em Coimbra. Contributo para a sua história” em Actas do II Encontro sobre História Dominicana, Vol. III, Tomo 2, Porto, Arquivo Histórico Dominicano Português, 1984, pp. 43-44 e António Rosário, “Primórdios dominicanos em Portugal”, em separata Bracara Augusta, vol. XVIII/XIX, n.º 41/42, Braga, 1965, pp. 19-20.
[8] Francisco da Gama Caeiro – “Os primórdios dos frades pregadores em Portugal. Enquadramento histórico-cultural”. in Actas do II encontro sobre história dominicana. Vol. III, Tomo 1. Porto. Arquivo Histórico Dominicano Português. 1984. p. 166.
[9] António Rosário, “Primórdios dominicanos em Portugal”, em separata Bracara Augusta, vol. XVIII/XIX, n.º 41/42, Braga, 1965, p. 17.
[10] José Mattoso – “Orientações da cultura portuguesa no princípio do século XIII”. in Portugal medieval. Novas interpretações. Lisboa. Imprensa Nacional – Casa da Moeda. 1992. 2ª edição. p. 233.
[11] Francisco da Gama Caeiro – “Os primórdios dos frades pregadores em Portugal. Enquadramento histórico-cultural”. in Actas do II encontro sobre história dominicana. Vol. III, Tomo 1. Porto. Arquivo Histórico Dominicano Português. 1984. p. 168.
[12] José Mattoso – “O enquadramento social e económico das primeiras fundações franciscanas”. in Portugal medieval. Novas interpretações. Lisboa. Imprensa Nacional – Casa da Moeda. 1992. 2ª edição. p. 332. Apesar de neste capítulo citado este historiador debruçar-se mais sobre os franciscanos, as explicações que fornece relativamente à atração daqueles frades pelos grandes centros urbanos podem aplicar-se aos clérigos mendicantes.
[13] Francisco da Gama Caeiro – “Os primórdios dos frades pregadores em Portugal. Enquadramento histórico-cultural”. in Actas do II encontro sobre história dominicana. Vol. III, Tomo 1. Porto. Arquivo Histórico Dominicano Português. 1984. p. 161.
[14] José Marques – “A evolução religiosa”. in Nos confins da Idade Média. Arte portuguesa dos séculos XII-XV (catálogo). Coordenação de Maria Antónia Pinto de Matos. Porto. Secretaria de Estado da Cultura/Instituto Português de Museus. 1992. p. 61.