Qui. Abr 25th, 2024
‘Subindo o Monte’ – rubrica dedicada ao pensamento e escritos de autores carmelitas
(Parceria com o Carmelo de Cristo Redentor – Aveiro)

«DITOS DE LUZ E AMOR»

José Vicente Rodrigues*

Exame do prólogo

1 – Este prólogo serve para todas as séries; está escrito em forma de oração a Deus Pai. Depois da invocação “ó Deus e meu deleite” certifica que quis empregar-se nestes «Ditos de Luz e Amor» por amor de ti»; segue o género literário de «confissão». Nela revela que tem consciência de possuir o «carisma», a «linguagem» de tais ditos, mas é igualmente consciente de não ter «a obra e virtude deles». Mais do que a linguagem e sabedoria deles agrada a Deus a vida correspondente.

2 – Para não ter a dupla responsabilidade, a de lhe faltar as obras e virtudes e a de silenciar ou afogar esta linguagem, vai proferi-los, esperando que outras pessoas, provocadas por eles, aproveitarão no serviço e amor do Senhor «em que eu falto e tenha a minha alma em que se consolar por ter sido ocasião de encontrares noutras o que falta nela». Assim expressa a sua vontade apostólica.

3 – Comprovado que o Senhor ama a discrição, a luz, o amor sobre as demais operações da alma; por isso os Ditos vão ser de «discrição para o caminhar, de luz para o caminho e de amor no caminhar». Três chaves: discrição, luz e amor.

A expressão imediata: «fique, pois, longe…», é resolutiva e peremptória. O que é que tem de ficar longe?

– A retórica do mundo.

– Os palavreados e a eloquência seca da sabedoria humana, fraca e engenhosa, de que Tu nunca gostas.

4 – A este discurso negativo sucede outro positivo que se concretiza assim: «e falemos palavras ao coração banhadas em doçura e amor, de que tu bem gostas».

Com este modo de escrever, negativo e positivo, irá tirando «tropeços a muitas almas que tropeçam não sabendo, e, não sabendo, vão errando, pensando que acertam no que é seguir o teu dulcíssimo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, e tornar-se semelhantes a Ele na vida, condições e virtudes e na forma da desnudez e pureza do seu espírito; mas dá-a tu, Pai de misericórdias, porque sem ti não se fará nada».

Assim termina este prólogo programático que se ajusta bem a todas as séries de avisos e sentenças, como disse anteriormente.

As palavras finais, em que diz no que podem faltar as pessoas, adiantam já temas nos quais vai insistir particularmente; e, assim, é de facto.

5 – Algumas características

Perante este género literário, é descabido falar de estruturas, mas podemos falar de núcleos especiais ou de séries de ideias ou temas nas quais se podem ir agrupando as sentenças. Podem-se relacionar facilmente todos os Ditos que têm a ver com a literatura sapiencial, e, mais concretamente, com a literatura sapiencial bíblica.

Contêm um certo método fundado na experiência e reflexão. São fruto da sua experiência traduzida em reflexão, que, tantas vezes, deriva em ordens práticas.

Acontece isto nos avisos que são mais pessoais e mais seus, e naqueles em que sentimos o eco ou a voz dos antigos apotegmas dos Padres ou monges do deserto, e que ele talvez recria e relança.

6 – As formas sapienciais em que se apresentam:

– «Provérbio-acontecimento», e «provérbio-causa» ou explicação, não poucas vezes fundidos num (nn. 4, 24, 42).

– Simples comprovação que floresce em conselho (nn. 17, 25, 36, 39, 40, 53, 54).

– Chamada de atenção (nn. 41-43, 54, 58-61, 63-67, 70-76).

– Mandato ou proibição (nn. 15, 17, 25, 41, 43, 91, 93, 111, 156, etc.).

– Bem-aventurança (n. 44).

– Apreciações mais amplas do que a breve e rápida da bem-aventurança. Todos estes começam com a contraposição «mais quer», «mais vale», «mais estima», «mais agrada a Deus», etc., (nn. 4, 12-14, 19-20).

– Pergunta ou interpelação urgente (nn. 2, 9, 15, 46-47, 49, 72-73, 76, 123, 130, 183).

– Sob a palavra «procure», segredo da pedagogia sanjoanina (nn. 53, 92, 141, 153-154, 161-162).

– Sentenças a modo de «definições» (nn. 28, 114, 174-175).

7 – Todas estas formas ou classificações andam por vezes misturadas, e São João da Cruz apresenta os Ditos num tom muito próximo do leitor, cheio de insinuações e diálogo, e em que prevalece o tu a tu (nn. 9, 12-15, 17, 25, 36, 39-41, 43, 48, 51, 54, 58-61, 63-78, 111, 122, 134, 156, 170, 184).

8 – Conteúdo:

A sua atenção recai especialmente sobre algumas realidades:

– A busca de Deus (nn. 2, 49, 132).

– O caminho e o caminhante (nn. 3, 11, 55, 57).

– A necessidade de mestre e guia espiritual; os proveitos de o ter e os danos de o não ter (nn. 5-11).

– Danos dos apetites desordenados: o que São João da Cruz submete a rigoroso exame em 1 S 4-12 e em 1 N 1-7, recorda-o ao longo destes ditos (nn. 18, 22-24, 48. 55, 77, 112, 121).

– A caracterização da alma enamorada (nn. 28, 70, 81, 87, 93, 96, 102, 114, 128, 158).

– O valor da razão e a obrigação de a seguir (nn. 43-45).

– O valor e a excelência do pensamento do homem, cujo destinatário há-de ser Deus (nn. 34-35, 115).

– A chamada à transcendência (nn. 53-54).

– A chamada à oração, a recorrer a Deus, a viver na sua presença (nn. 52, 65-67, 87, 89, 123, 141, 180).

– Os sinais do recolhimento (n. 118).

– A animação teologal (nn. 137, 143, 158).

– A caridade fraterna (nn. 46, 60-61, 108, 117, 134, 146-151, 173, 178, 184).

– A hora da conta e a matéria do exame (nn. 59, 73, 76).

– O amor aos trabalhos e sofrimentos (nn. 93-94, 130, 163).

– Nada te perturbe (nn. 56, 63, 69, 153).

– Amor puro e desinteressado (gratuito) para com Deus (nn. 20, 58, 158).

9 – Grandes motivações por Deus e por Cristo (nn. 158, 161, 176, 182, 186). O que é que mais agrada a Deus? Já o disse no prólogo. Vai identificando nos Ditos outros valores e atitudes: a pureza de consciência, a obediência, o amor à cruz, o governar-se pela razão, a humildade, os bens espirituais (nn. 12-14, 19-20, 43, 58, 78, 88. 102, 104). Nesta perspectiva pode aconselhar simplesmente: «…e procure agradar sempre a Deus» (n. 154) e acrescenta: «Peça-lhe que se faça em si a Sua vontade. Ame-O muito, como é seu dever».

– Imitação de Cristo. No fim do prólogo indicava como este iria ser o fio condutor de tudo; mas, di-lo, de modo mais explícito e evidente nalguns Ditos, assinalando a pessoa de Cristo crucificado, de Cristo Esposo (nn. 30, 86, 89, 91-94, 99, 101, 103-104, 159-161, 163, 176).

– Cristo o único exemplo e modelo (n. 156).


*Vicente Rodrigues. 100 Fichas sobre S. João da Cruz. Edições Carmelo, Avessadas. Pp. 203 -205.


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