Sex. Mar 28th, 2025
‘Subindo o Monte’ – rubrica dedicada ao pensamento e escritos de autores carmelitas
(Parceria com o Carmelo de Cristo Redentor – Aveiro)

Carta de apresentação de S. João da Cruz

Carta de apresentação de João da Cruz nascido
e morto dentro do grande século de Ouro espanhol.
Onde houve tantos engenhos e eminentes
nas mil ordens da vida, este pequeno homem
“carmelita em sandálias e escasso de figura”
sobressai como o maior poeta lírico das letras espanholas.
Mestre espiritual insigne e guia para as alturas.
Montanhista divino.

 

José Vicente Rodrigues*

1. Aquele que conhecemos agora como São João da Cruz na Igreja e na história universal teve três nomes. O seu nome de família era João de Yepes Álvarez, ao entrar no Carmelo em 1563 adoptou o nome de Frei João de São Matias; ao iniciar com a Madre Teresa a renovação dos frades na Ordem do Carmo em 1568 chamou-se João da Cruz. «João da Cruz é uma das seis ou oito personalidades mais gigantescas e também mais enigmáticas do Ocidente, e um cristão de um radicalismo que põe um pouco carne de galinha, mas cuja voz não se pode deixar de escutar, e tanto como poeta como quanto místico, cada dia resulta mais novo e surpreendente e moderno» (Jiménez Lozano).

2. Estamos diante de uma personagem a-histórica?
Nos seus escritos não há, evidentemente, o conjunto de dados, alusões, referências históricas, como há nas obras de Santa Teresa; nem escreveu tão-pouco frei João a sua autobiografia, embora haja alguns dados biográficos nos seus escritos, especialmente nas suas cartas. Por estas razões podemos entender que o Santo não se refira tanto ao contexto em que lhe tocou viver nem à multidão de personagens com quem teve de se cruzar. Embora isto seja assim, não há que pensar num frei João intemporal ou a-histórico. Foi uma personagem do século de ouro espanhol, nascido e morto no século XVI.

3. Há nos seus livros alusões claras a factos históricos dos seus dias, tais como a descoberta da América (CB 14-15, 8), a sua confissão expressa de copernicanismo a favor do movimento da terra, quando ainda se discutiam as teses de Copérnico e o seu sistema heliocêntrico (CH B 4, 4). A ruptura da cristandade pelo protestantismo e a dura crítica a algumas das suas doutrinas (3 S 5, 2). Uma tremenda alegação, naquele ambiente de reforma de toda a Igreja, contra os bispos remissos em pregar a palavra de Deus (2 S 7, 12). Na Chama alude com grande ironia ao fenómeno do Alumbradismo (CH 3, 43).

4. Mas encontramos frei João mais metido nos problemas de ordem espiritual ou religioso e é aí onde melhor se enquadra, pois foi aí que se moveu com o peixe na água. Neste universo vemo-lo a denunciar o espírito milagreiro e visionário de tantas pessoas (3 S 31, 8-9). Aludindo ao seu tempo, não aos tempos passados, dirá: «E admiro-me muito com o que se passa nestes tempos e é que qualquer alma simples com quatro maravedis de consideração, se sente algumas locuções destas nalgum recolhimento, logo baptizam tudo como de Deus, e supõem que é assim, dizendo: “Deus disse-me”, “Deus respondeu-me”; e não será assim, mas a maior parte das vezes são elas que o dizem» (2 S 29, 4). Pouco antes deu outro testemunho pessoal dizendo: «Eu conheci uma pessoa que, tendo estas locuções sucessivas, entre algumas muito verdadeiras e substanciais que formava do Santíssimo Sacramento da Eucaristia, havia algumas que eram autênticas heresias» (2 S 29, 4).

5. A sua denúncia mais dura e forte centra-se na grande carência de guias idóneos nos caminhos do espírito que descobria nos seus dias e o excessivo número de inexperientes e presunçosos, com o grande dano que se seguia para a Igreja (Subida, prólogo; CH B 3, 30-62). Neste seu universo mental e espiritual pode-se configurar um mapa bastante preciso de temas que são, ao mesmo tempo, em vários casos, as denúncias proféticas bem pensadas de um místico: um mundo colorido daquele momento que desenha no tema da religiosidade popular, religiosidade que valoriza, mas que quer vê-la livre e purificada de tantas adesões e ressonâncias estranhas (3 S cc. 35-44). Poderíamos aumentar este tipo de dados, mas já são suficientes para nos darmos conta do mundo mais próprio de João da Cruz, e, no qual, se movia com grande conhecimento de causa.
6. João de Yepes, frei João de São Matias, frei João da Cruz, o venerável, o beato, o santo, o doutor da Igreja: São João da Cruz, são diversas denominações da mesma pessoa. Uma pessoa na qual se encontram o homem, o poeta, o pregador, o escritor, o contemplativo e amante da solidão e do retiro, e o peregrino de tantos caminhos de Castela e Andaluzia, de Múrcia e Portugal, o místico e o santo, o guia espiritual e o mistagogo.
Depois de quatrocentos anos da sua passagem pela terra, suscita, como se fosse um cometa de esperança, um interesse singular. E está a ser um dos escritores de maior audiência entre os católicos e não católicos, crentes e ateus, que o lêem com deslumbramento. Podemos pensar que interesse da gente especialmente preparada, entre os filósofos, os teólogos, os biblistas, os psicólogos e psicanalistas, os literatos, os ecologistas, os afeiçoados a todos os credos e a nenhum, é uma homenagem consciente e inconsciente à sua contemporaneidade, mas é, sobretudo, a esse «não sei quê» de conteúdo e espírito transcendente e religioso que anima os seus livros.

7. Quem se aproximar dele sem preconceitos ou queimando os preconceitos iniciais conhecê-lo-á e intimará com ele.
Walter Nigg, não católico, no seu livro Grosse Heilige (Grandes Santos), procura apresentar a figura dos grandes santos que são capazes de despertar no nosso tempo a inextinguível sede da santidade e capazes também de «criar um novo alfabeto para desvelar novamente o segredo da verdade». Na sua obra concede um grande espaço a São João da Cruz e fala dele sob o título: Der dichter der Mystik (o poeta da mística). Aparte apreciações ou estimações que não partilho, acerta plenamente ao escrever: «O conteúdo das obras de João da Cruz apresenta-se como um poema grandioso que gira exclusivamente à volta de dois pólos: Deus e a alma. Todas as suas obras são variações deste único tema no qual concentra toda a atenção. De tal modo apanhou todo o ser de João da Cruz, que, em sua comparação, todos os outros valores são como se não fossem. Por esta razão, João revela-se como uma das personagens mais religiosas na história do cristianismo. Nas suas poesias e nos seus escritos em prosa João da Cruz não escreve senão a própria autobiografia interior. A alma, da qual diz tantas coisas, é a sua alma. Em tudo o que conta dela, se pode escrever o nome de João da Cruz. Este santo, não obstante toda a sua taciturnidade, não podia fazer confissões mais profundas, mesmo

quando aparentemente não aluda a si mesmo com nenhuma palavra, Só poucas obras desvelam o íntimo dos santos de um modo tão evidente como os poemas deste “monge”».
8. Vista esta carta de apresentação, torna-se relativamente fácil repartir a sua vida nestes três períodos, correspondentes ao seu único nome e três apelidos:
– João de Yepes (1542-1563)
– João de São Matias (1563-1568)
– João da Cruz (1568-1591).

*José Vicente Rodrigues. 100 Fichas sobre São João da Cruz. Edições Carmelo, Avessadas. Pp. 6-9.