Sáb. Mar 22nd, 2025
‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | Parceria com a revista ‘Mundo Rural’

(Artigo originalmente publicado em janeiro de 2021)

Luís Manuel Pereira da Silva*

 

Estamos a iniciar… Não só um novo ano, que se espera mais luminoso do que o que deixámos para trás (2020 não se livrará de ser recordado como o ano da pandemia…), mas também um novo projeto de revista.

‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ nasce como um novo espaço num mais global e renovado projeto de revista ‘Mundo Rural’, disposto a acolher os desafios destes tempos.

A escolha deste título exige uma explicação, para que se torne transparente e simbólico e escapar, assim, ao ainda opaco significado de uma leitura rápida.

Ítaca é uma ilha do Mar Jónico, situada ao largo da Grécia. Mas pouco nos interessará essa informação de ordem geográfica. Importa, antes, a simbologia a ela associada.

Ítaca é a ilha onde, segundo a mitologia grega recolhida por Homero na sua ‘Odisseia’, vivia Ulisses, com a sua mulher, Penélope, e o filho, Telémaco, e da qual aquele se ausenta, durante cerca de vinte anos, para participar na célebre Guerra de Troia, travada entre gregos e troianos e ganha graças à destreza dos primeiros que introduziram, dentro das muralhas da cidade, o não menos célebre ‘cavalo de Troia’, no qual se escondiam os soldados.

Tantas figuras se entrelaçam nesta história… Cassandra, a mulher que tinha o poder de antecipar o futuro, mas que sofria os efeitos de uma maldição que impedia os outros de nela acreditarem; ou a célebre Helena, mulher de Menelau, que foi raptada por Páris, e que esteve na origem da referida guerra. Ou, ainda, Aquiles, aparentemente invulnerável, mas que no seu calcanhar se manifestava frágil, e tantas, tantas outras figuras que preenchem o imaginário coletivo ocidental…

Se tal era, já por si, suficiente para justificar a sua recuperação para encimar uma rubrica de reflexão, não é, ainda, por isto que decidimos atribuir a designação de ‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ a esta secção.

Para melhor compreendermos o que nos propomos fazer, importa reparar, antes de mais, na escolha das palavras.

 

Porquê ‘regresso’?

‘Regresso’ é uma palavra que reserva uma ambiguidade: pode ser um substantivo – ‘o regresso’ – e estaremos a falar de um evento concreto: o retorno a um ponto deixado para trás. Sim, também teremos esse objetivo, nesta rubrica: regressar aos fundamentos, aos princípios que nunca deveríamos ter abandonado ou que importa consciencializar.

Mas ‘regresso’ pode ser, também, a primeira pessoa do singular do verbo ‘regressar’. Sendo assim, estaremos a incluir-nos na própria rubrica, fazendo desta uma reflexão em que nos envolvemos de forma ativa: ‘estou a regressar a Ítaca’.

Diante destas duas possibilidades abertas com ‘regresso’, há que saber o que reserva, então, ‘Ítaca’ que mereça o nosso caminho de regresso.

 

Porquê ‘ìtaca’?

Como dizia acima, Ítaca é a ilha de Ulisses. Dela partiu para participar e vencer a guerra de Troia. Uma guerra movida por um ‘aparentemente’ fútil motivo: a efémera, ainda que singular, beleza de alguém. Mas, mais do que isso, há que recuperar o significado da própria viagem de regresso a Ítaca feita por Ulisses. Num dos seus momentos, este depara-se com a sedução das sereias (não ‘mulheres-peixe’, como é costume ser recordado, mas sim ‘mulheres-pássaro’). A sua melodia é tão sedutora que, para sobreviver à passagem por aqueles mares de encanto, Ulisses tapa com cera os ouvidos dos seus companheiros, para que estes não ouçam as melodiosas sereias, e prende-se ao mastro do seu barco, a fim de que, mesmo ouvindo as suas ‘vozes’, possa ultrapassar este obstáculo sem a ele ceder. A tentação de se desamarrar é enorme, mas os seus companheiros, devidamente instruídos, não o deixam concretizar o desiderato e ainda apertam mais os laços que o amarram ao mastro. E Ulisses sobrevive à passagem pelas mulheres-pássaro. Simbologia das vozes que, hoje, tão encantadoras como outrora, nos propõem abandonarmos o caminho certo em nome de efémeros benefícios.

A viagem de Ulisses depara-se, ainda, com a dificuldade de transpor ‘Cila e Caríbdis’, no estreito de Messina, um rochedo e um remoinho, que ficaram na história como expressão de uma estreita passagem em que não há que vacilar, pois, de um e outro lado, estão perigos intransponíveis…

Enquanto a viagem de Ulisses se concretizava, estava a acontecer na meta do seu regresso o outro evento para o qual devemos voltar o nosso olhar.

Penélope permanecera em Ítaca. O avançar do tempo e a demora no regresso do seu marido fez avolumar-se o número dos pretendentes que a assediavam e seduziam para que se desvinculasse dos laços que a uniam a Ulisses. Face às investidas dos pretendentes e à própria insistência do seu pai para tal, Penélope prometia que cederia aos intentos dos pretendentes quando concluísse um sudário que, no seu tear, estava a preparar para Laertes, pai de Ulisses. Penélope, porém, fiel ao seu compromisso de amor, desfazia, durante a noite, o que fizera, durante o dia, jamais chegando o dia em que se concluiria a sua tarefa de confeção têxtil.

Ítaca é, assim, não só símbolo da persistência e resistência de Ulisses que não sucumbe à sedução das vozes que inebriam e distraem, mas, também, da fidelidade de Penélope que, inteligentemente, sobrevive às investidas dos que a querem desvincular dos valores que a sua consciência desvela como fundamentais. É sinal da solidez da ética e dos valores mais seguros perante a ‘liquidez’ das existências que se submetem ao que é mais efémero. É expressão de um horizonte que sobrevive à vertigem do imediato, esgueirando-se, com destreza, entre a ‘Cila’ da amnésia de quem não sabe donde vem e a ‘Caríbdis’ de quem não tem olhar de futuro, não sabe para onde vai.

 

Porquê ‘no sonho do Éden’?

Se esta rubrica se ficasse por ser «regresso a Ítaca», correria um risco: não ser mais do que um retorno ao passado, sem esperança. Mas ‘regresso a Ítaca’ é feito ‘no sonho do Éden’: pretende ser um lugar de esperança. A esperança que se expressa, em Génesis, na simbologia do Éden: expressão do sonho de Deus para a Sua Criação. Sonho que a mesma Criação tantas vezes traiu e continua a trair. Éden é, aqui, muito mais do que um desejo tardio de um lugar abandonado, mas o lugar que se aponta no horizonte como o alvorecer no amanhã de Deus. Como referem tantos teólogos, o Éden é muito mais do que a saudade do paraíso perdido: é expressão do desejo eterno de Deus jamais suficientemente concretizado, na História, mas entretanto antecipado em Jesus Cristo.

 

‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ propõe-se, assim, à luz desta densa simbologia, ser um espaço de encontro entre cultura e teologia, um lugar de reflexão sobre o que permanece, perante a fugacidade da vida; uma análise sem receios, corajosa, vislumbrando o que ‘é’ perante o que ‘parece’; um olhar de tempo diante do efémero, sem temer a maldição de Cassandra: mesmo que não nos escutem, hoje, saberão que, um dia, alguém alertou para os perigos de um rumo incerto, porque nada há de mais progressista do que a ética que se dispõe a antecipar o amanhã. Nunca numa perspetiva passadista e saudosista, mas vinculada à esperança.


Imagem: Ulisses e as sereias | John William Waterhouse – 1891


*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura e autor de ‘Bem-nascido… Mal-nascido… Do ‘filho perfeito” ao filho humano’
Artigo originalmente publicado em www.teologicus.blogspot.com