Sáb. Abr 20th, 2024

Pe. Georgino Rocha 

É impressionante o que acontece a Jesus, após o baptismo. Imediatamente, se dirige ao deserto onde fica quarenta dias. Fá-lo “impelido” pelo Espírito Santo que sempre o acompanhará ao longo da sua missão. Mc 1, 12-15. Também a nós o Espírito nos conduz ao deserto e nos faz ver as tentações que nos habitam: “eu sei, eu posso, eu tenho; .., as tentações de não olhar, de fugir, de dissimular e esconder, de não ouvir o que não nos agrada”. Sempre o meu eu referencial.

É esclarecedor e provocante o motivo que o leva ao deserto: ser tentado por Satanás, a figuração por excelência das forças do mal. A tentação assalta-o ao longo de quarentas dias, o tempo da sua estadia entre animais selvagens, com os quais convive em harmonia. Vencida a tentação, surge o apelo/exortação: “Convertei-vos e acreditai no Evangelho”

O deserto e a tentação surgem como metáforas da realidade humana. Hoje, revestem as formas da nossa situação histórica e social, da nossa cultura fragmentada e subjectivista, da nossa economia precária e subjugada, da nossa religião predominantemente pendente do gosto do “cliente” e das tradições.

O deserto instalou-se no coração humano e da sociedade: As relações sociais quase se desvitalizam, o isolamento solitário aumenta, qual sombra negra a coar a luz intermitente que ainda resta, o individualismo egoísta e insolidário cresce como “feras indomadas”, o assédio aos indefesos e humilhados instala-se, e prepara-se o assalto final para a victória do “bezerro de ouro” – o ídolo do tempo de Moisés – sobre a pessoa e a sua dignidade reconfigurada em Jesus Cristo, o vencedor absoluto da dizimadora tentação.

Sinais e exemplos mortificantes desta situação provocadora estão à vista de todos: orçamentos familiares dramáticos, perda de emprego, redução dos serviços essenciais, esmorecimento da esperança, especialmente nos casais jovens, emigração de quadros qualificados, preparados com grandes sacrifícios dos familiares ou do erário público, venda de habitações que, com tanto amor, foram adquiridas, ou entrega de casas endividadas aos bancos.

Situações, de sinal contrário, ostentam-se, em anúncios de publicidade sedutora, que oferece “produtos inteiramente desnecessários, mas apresentados como se fossem urgentes: luxo, diversão, sexo, abundância de alimentos até ao desperdício”. O contexto cultural está eivado de grande consumismo que surge como condição indispensável para a felicidade. Esta cultura do consumo tem um preço muito alto que está a ser pago: desastres ecológicos e ambientais, pobreza crescente em países empobrecidos, aumento da fome no mundo, de violência física, de abuso de drogas, de crime organizado e de usura. Outras situações podem facilmente encontrar-se, aumentando o cortejo apresentado.

O deserto é também espaço de vitória. Tantos homens bons e justos fazem da sua travessia um percurso solidário, um tempo de atenção ao outro, de partilha de bens, de alento na esperança de chegar ao oásis desejado, de advertência contra as falsas miragens, de resistência paciente face à pressa ingénua de enveredar por atalhos, de alimentar “o sonho que comanda a vida”. É verdadeiramente um espaço terapêutico para quem vive a quaresma a caminho da Páscoa.

“Como a Jesus, o Espírito nos leva como Igreja e comunidade reunida ao deserto… Experimentamos estar numa travessia por vários «desertos»: a fragilidade que a pandemia acentua, a transição de valores que se cruzam na cultura actual e geram confusão ética em questões fundamentais… Experimentamos incerteza e insegurança, vacilamos em como contar a nossa experiência de Deus no meio da sociedade de hoje… Temos que aprender a voz do Espírito de Deus que nos fala em comunidade: devemos pôr-nos em marcha por novos carreiros e atalhos. No deserto, olhamos de frente as tentações que nos habitam como humanidade solidária, como Igreja no meio do mundo: o cuidado da casa comum, o cuidado dos mais desfavorecidos, as consequências do egoísmo económico, as feridas das ambições económicas”. Homilética, 2021/2, 122.

O Papa Francisco afirma que a quaresma é o tempo para “renovar a fé, a esperança e a caridade”. E exorta-nos a viver uma quaresma de caridade que “significa cuidar de quem se encontra em condições de sofrimento, abandono ou angústia por causa da pandemia de Covid-19”. Aborda várias das práticas tradicionais deste período, que apresenta como “condições” para uma conversão pessoal. Recomenda um jejum que combata também a “saturação de informações – verdadeiras ou falsas – e produtos de consumo”, para permitir uma vida marcada pela “simplicidade de coração”.

O caminho da pobreza e da privação (o jejum), a atenção e os gestos de amor pelo homem ferido (a esmola) e o diálogo filial com o Pai (a oração) permitem-nos encarnar uma fé sincera, uma esperança viva e uma caridade operosa”.

Jesus vence a tentação e rasga horizontes ao nosso peregrinar. É livre, confirma o baptismo recebido, adere confiadamente ao projecto de Deus Pai. Como Ele estamos em trânsito no deserto da vida. A meta já se vislumbra. Ele já a viveu na sua Páscoa. Para lá caminhamos seguindo os seus passos. A isto nos convida o tempo quaresmal que a Igreja nos propõe.


Imagem de Jörg Peter por Pixabay