O calendário e as festas móveis I/II
Pe. Cristóvão Cunha
Este artigo é uma pequena fracção de um trabalho muito maior, relativo ao Observatório Astronómico do Vaticano, que teve na sua origem, a preocupação que visava a reforma do calendário Juliano.
1. O calendário
A preocupação concreta que fez com que no passado se estudasse as estrelas e planetas, refere-se à necessidade de criar um calendário que fosse o mais preciso possível, para que as pessoas se pudessem orientar no que diz respeito às estações do ano, época das sementeiras, das colheitas, entre outros.
Um calendário, de uma maneira geral podemos dizer que consiste em um conjunto de unidades de tempo – dias, semanas, meses, anos – organizadas com o propósito de medir e registar eventos ao longo de grandes períodos.
Um calendário conta os dias em unidades de semanas, meses e anos. O desafio de fazer um calendário, nasce do facto de que o mês lunar não tem um número exacto de dias. Do mesmo modo, o ano (civil) como o conhecemos não tem um exacto número de dias nem de meses (lunares). As diferenças, as fracções de dias e as fracções de meses, vão-se acumulando ao longo do ano e no fim é necessário acrescentar ou subtrair dias de modo a que o calendário esteja em harmonia com a sequência anual das estações .
A semana, constituída por sete dias, que provavelmente teve origem na Babilónia, e que foi precedente à história escrita, segundo uma das teorias que estuda o calendário, era um modo concreto para contar os dias que separavam os dias de feira. O mês era originariamente baseado nas fases da lua. Conhecer o período em que a lua estava cheia (e portanto iluminava o céu de noite), era particularmente importante para caçadores e feirantes. Por sua vez, o ano era um período muito importante para as sociedades agrícolas, pela importância que tinha conhecer os períodos da sementeira e da colheita .
2. O Calendário hebraico
Para os hebreus, o calendário não era simplesmente um conjunto de números que os homens tinham estabelecido, mas era baseado sobre determinados fenómenos celestes que estes atribuíam a Deus. E vemo-lo no modo como a Bíblia descreve a tarefa última do criador na criação dos corpos celestes. No livro do Génesis (1, 14-18) é dito que Deus disse: «Haja luzeiros no firmamento dos céus, para separar o dia da noite e servirem de sinais, determinando as estações, os dias e os anos; servirão também de luzeiros no firmamento dos céus, para iluminarem a Terra.» E assim aconteceu. Deus fez dois grandes luzeiros: o maior para presidir ao dia, e o menor para presidir à noite; fez também as estrelas. Deus colocou-os no firmamento dos céus para iluminarem a Terra, para presidirem ao dia e à noite, e para separarem a luz das trevas. E Deus viu que isto era bom» . Também no salmo 104, versículo 19 “A lua cumpre as várias estações” . Isso indica-nos que o calendário judaico era portanto de base lunar, atendendo ao facto de se tratar de um fenómeno celeste facilmente visível.
O tamanho real de um mês lunar, o tempo durante o qual a lua atravessa todas as suas fases (lua nova, primeira falcada, primeiro quarto ou quarto crescente, primeira giba, lua cheia, segunda giba, segundo quarto ou quarto minguante e segunda falcada ) é de vinte e nove dias e meio (29.53085). Segundo os hebreus, o ano consistia em doze meses que se alternavam com o tamanho de 29 e 30 dias. O problema é que este “ano lunar” tem apenas 354 dias e, por isso é 11 dias mais curto que o ano solar que segue as estações. Os agricultores porém precisavam de ter em mente as estações para regular as actividades que levavam a cabo, nomeadamente as sementeiras e as colheitas. Assim, em cada calendário destinado a seguir a lua e o sol (calendário lunissolar), é necessário introduzir um mês extra, intercalado a cada dois ou três anos .
No ano 432 a. C. o matemático grego Metão (Meton of Athens), observou que 19 anos solares correspondiam a 235 lunações. Tratava-se de uma diferença de um par de horas, que equivaliam a cerca de um dia no arco de 300 anos. É possível portanto coordenar os calendários lunares e solares inserindo sete meses intercalares neste período de 19 anos. Este calendário era bastante acessível, mas os hebreus não o conheciam, e à falta de uma regra precisa, era bastante complicado inserir um mês extra intercalado. Com um simples gnómon, qualquer astrónomo poderia facilmente estabelecer a posição do sol, observando a mudança do cumprimento da sombra do sol, projectada por um pau colocado na vertical ou por um obelisco. No entanto o Sinédrio, a assembleia dos anciãos que regulava a vida dos hebreus, não era particularmente sistemático no cálculo do progresso das estações. Era portanto difícil estabelecer com certeza a primeira lua (ou mês) do ano e os meses intercalados eram inseridos todas as vezes que se retinha necessário. Preferiam assim assumir acontecimentos importantes que decorriam ao longo do ano, ao invés de começar a contar desde o início do ano.
O ano começava sempre com o primeiro dia do mês lunar. Normalmente, o primeiro mês do ano coincidia com o início da primavera. O mês lunar começava sempre com a lua nova. O dia da lua nova era uma festa que contemplava o rito de alguns sacrifícios junto do templo (Nm 28, 11.15: «No primeiro dia dos meses, oferecereis um holocausto em honra do Senhor […] Este será o holocausto do começo do mês para cada mês do ano»).
Não foi sempre fácil fixar o início do mês. A juntar-se ao mau tempo, quando começa o mês lunar, na lua nova, o sol encontra-se em conjunção com a lua, o que impossibilita a visão da mesma, e só se sabe que foi lua nova, no dia seguinte, ao ver a lua em quarto crescente, baixa no horizonte. Os próprios muçulmanos, ainda hoje, devem esperar a primeira lua crescente da lua nova para regular o calendário religioso e assim usam a observação directa para estabelecer os inícios do mês e do ano.
Para determinar a data da Páscoa, os hebreus seguiam a lei mosaica (de Moisés) estabelecida no Êxodo (12, 1-8), Números (28, 16) e Levítico (23, 5): «No décimo quarto dia do primeiro mês, ao crepúsculo, é a Páscoa do Senhor ». Assim, a décima quarta noite do primeiro mês equivale à primeira lua cheia do ano, porque a lua cheia acontece sempre catorze dias depois da lua nova. Note-se que com esta definição a festa da Páscoa não era para eles móvel, mas sempre fixa no mesmo dia, do mesmo mês de cada ano. A escolha de qual mês fosse o primeiro do ano dizia respeito ao Sinédrio. Era ele a decidir da utilidade ou não de acrescentar um mês num dado ano.
Depois da destruição de Jerusalém no ano 70 d. C. e a consequente diáspora do povo hebraico, deixou de ser possível manter este sistema. Deixara de existir a autoridade de um templo que anunciasse o início dos meses e dos anos. Assim começou a usar-se o ciclo de Metão de 19 anos, que já não era baseado na observação directa da lua. Assim, toda a comunidade hebraica na diáspora poderia celebrar a Páscoa no mesmo dia.
(Conteúdo do próximo artigo: O calendário cristão e O calendário gregoriano)
Para saber mais:
Consolmagno, Guy (2009), “L’Infinitamente Grande, L’Astronomia e il Vaticano”, Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana.
Máximo Ferreira e Guilherme de Almeida, (2004), “Introdução à Astronomia e às observações astronómicas”, Lisboa: Plátano Editora.
Maffeo, Sabino (2001), “La Specola Vaticana – Nove Papi Una Missione”, Città del Vaticano: Pubblicazioni Della Specola Vaticana.
Carta de motu próprio Ut Mysticam a propósito da refundação e ampliação do observatório do Vaticano de Leão XIII de 14 de Março de 1891, XIV do pontificado.
Casanovas, Juan S.J., “Determinación de la Pascua”, Rivista Liturgica, 2001.
Constituição conciliar Sacrossanctum Concilium sobre a sagrada Liturgia, (1963).