Mystérios lusitanos | A vinte e três (23) de cada mês, habitamos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra…
Alberto Ferreyra*
– Oh, avô, encontrei esta peça preta, nos seus arrumos.
– Não te disse para não andares a remexer nas minhas coisas? – No olhar do avô de M. adivinhava-se um brilho de regozijo por aquela aparente coincidência ocorrer. Uma peça de chumbo preta dava-lhe o pretexto de que precisava para contar umas das suas vivas memórias que descrevia como quem está a narrar-nos num evento atual.
– Tem aqui qualquer coisa escrita.
– 3 de agosto de 1958.
– Isso mesmo! – M. não desprendia os olhos da peça de chumbo, como que desejando dar-lhe a leveza que o chumbo não tem e fazê-la voar no tempo e no espaço. – Como é que isso veio aqui parar? Diga, avô, diga. – M. suspeitava que grandes mistérios se ocultavam naquela aparentemente simples peça de chumbo.
– Recebi-a das mãos do Manel ‘dois gumes’, momentos antes de partir para a eternidade.
– Credo, avô!
– Temos de partir destas terras do Antuã para as serranias do braçal, onde desde o tempo dos romanos se explorava o interior da terra para dela retirar minérios. Sem exploração durante séculos, foram reativadas em 1836, tendo sido, mesmo as primeiras do país a que foi feita concessão de exploração.
M. não descansou enquanto não convenceu o avô a fazer uma viagem até ao belo cenário da história de que falava a peça de chumbo com data já um pouco delida do tempo…
Quando o desejo toma conta da alma, o espaço parece esfumar-se…
A estrada dera lugar à terra batida, outrora lisa como a mais atapetada autoestrada de hoje… Os arbustos e ervas assumiram o lugar do outrora buliçoso sítio de um labor que exalava das entranhas da terra. O silêncio era, agora, a única voz que restava.
O avô de M. adiantou-se um pouco. Os olhos ficaram rasos de lágrimas, mas conteve-se, para que M. e o irmão, J., que os acompanhara, não se apercebessem.
Mas M. era atenta.
Pousou, delicadamente, a mão sobre o ombro do avô e recostou a cabeça. Ambos olhavam para o cenário, agora destruído pelas enxós e britadeiras do tempo…
– Isto é o que resta do forno alto. Aqui trabalhou Manel ‘dois gumes’ os seus últimos anos de vida. Daqui recolheu, da última produção, a peça que encontraste. Este era o fim da linha. Aqui, o minério extraído era fundido, com outros produtos químicos, de modo a obter-se em estado de fusão, o chumbo que, líquido, era vertido para as formas que tinham um peso correspondente a cerca de 40 ou 50 quilos. Esta peça era apenas uma amostra para se poder apreciar a qualidade do produto que saía de cada campanha. Só era posto em funcionamento quando havia quantidade suficiente para produzir as quantidades necessárias à venda, na maioria, para exportação.
– Quem aqui trabalhava estava em melhores condições do que os que tinham de descer às minas, não, avô?
– Não era bem assim. Bem certo que, nesses tempos, não havia máquinas nem as condições de que, hoje, dispomos. No interior da terra, a temperatura é sempre baixa e a humidade é abundante. Os homens tinham de subir, com frequência, para secar os grossos casacos com que se cobriam, mas que, quase que de hora a hora tinham de vir secar. Mas havia a vantagem de se contar com uma temperatura estável e previsível. No forno alto, que tinha este nome mas era, afinal, o último ponto de todo o circuito de produção e o que se encontrava mais perto do rio, as temperaturas era de inferno. Os trabalhadores tinham de sair a cada duas horas para beber leite e respirar. Saíam amarelos. Os gases exalados pelos produtos envolvidos na produção do chumbo pareciam queimar até às fímbrias da alma.
– O avô parece um poeta a falar…
– Mas estou ainda a ver todo o movimento. E a recordar-me da cara daqueles pobres diabos. Também eu trabalhei nestas minas, ainda miúdo… (Quem me dera andar, como tu, na escola. Mas os tempos eram outros!). Aqui trabalhou, também, o Manel ‘dois gumes’. Teria uns trinta e poucos anos, quando nos conhecemos. Regressara de uns tempos na região das Antilhas. Todos tinham enorme admiração por ele. Era um homem fechado, de poucas palavras, mas com quem se podia contar, sempre. As recomendações eram de que, no forno alto, se fizesse uma pausa a cada duas horas, mas ele só fazia ao fim de três horas, para permitir que os seus outros três companheiros pudessem fazer mais intervalos. Acompanhavam-no, neste forno, três irmãos, filhos do Joaquim da Fonte.
– Os nomes, nestas terras, são muito engraçados, avô.
– Estes são os nomes com que os lembramos, mas, muitos deles eram ‘silvas’ ou ‘bastos’ ou ‘macedos’… Mas as ‘alcunhas’ colavam-se à pele e pegavam-se ao espírito. Tomávamos nova identidade que não mais se desprendia de nós. O Joaquim da Fonte morrera, em inícios da década de quarenta, na última tragédia acontecida nestas minas. O sistema de minas aqui criado era longo e prolongava-se pelas minas da malhada, chegando até à mina Francisca. Existiam sistemas de drenagem da água para evitar acumulação excessiva de águas. Um desses meios de drenagem era garantido pela mina do esgoto. Esse ano fora, porém, particularmente chuvoso. Com as chuvas, vieram ramos, troncos e entulhos que se acumularam na entrada da mina do esgoto.
Os oitos homens, sete adultos e uma criança de doze anos, estavam no fundo do poço, a um salto da escada que lhes dava acesso ao cimo. A água acumulada ia-se encaminhando, pela mina do esgoto, em direção à saída, rumo às águas do rio que, destas minas para baixo, toma o nome de rio mau. (Dizem os que aqui trabalharam que a história que agora te conto é que determinou que o rio bom passasse a chamar-se, daqui para baixo, ‘rio mau’. Mas outros dizem que o chumbo que inquinava estas águas foi o responsável pela mudança de nome. Deixo à tua imaginação, M., decidir quem melhor batizará de ‘mau’ um rio…) Os entulhos acumulados fizeram, porém, refluir a água, apanhando desprevenidos os sete homens e a criança.
– Então e que mistério se esconde nesta peça, avô?
– Quando a tempestade acalmou, os muitos trabalhadores destas minas partiram em busca dos sete homens e da criança. Nunca mais foram vistos. Fizeram-se funerais e as lágrimas não mais secaram nos rostos das viúvas, e daquela pobre mãe, já viúva. Diz-se que morreu pouco tempo depois, de desgosto.
– Continuo sem perceber, avô.
J. ouvia, apenas. Deixava-se levar pela curiosidade da irmã, que verbalizava o que ele mesmo pensava.
– Disse-te que recebi esta peça das mãos do Manel ‘dois gumes’. Curiosamente, não me perguntaste porque tinha tal alcunha. O mistério esconde-se nas suas mãos. Encontrei o Manel ‘dois gumes’ já em 1956, pouco antes da última produção de chumbo destas minas, de que se guarda registo nessa peça que achaste entre as minhas recordações. Quando ma entregou, contou-me a sua história e porque tinha vindo das Antilhas.
Fugira para lá em meados da década de 40, depois de ter andado fugido. Fugira da sombra do seu passado, da culpa de se sentir um indevido escolhido. Manel era a criança que, com os outros sete homens, fora chorada. No último momento, o ombro de Joaquim da Fonte servira-lhe de trampolim para o último degrau da escada a que se agarrara, escapando ao infortúnio dos seus outros sete companheiros. Ao lançar a mão ao degrau, uma dor lancinante quase o fez desprender-se. Mas resistiu, pois as últimas palavras de Joaquim que lhe mandara que se erguesse para a vida sobre o seu ombro, ainda lhe ressoavam ao ouvido: ‘foge desta vida desgraçada…’. Ganhou forças e subiu, entre as grossas gotas de água que continuavam a escorrer. Obedecera, durante anos, ao que lhe impusera o Joaquim da Fonte, mas a culpa de ter abandonado a mãe e de não ter deixado qualquer indício de que a sua vida dependera da generosidade daquele samaritano do fundo da terra fizeram-no regressar. Ninguém o reconheceu, pois partira criança e regressara homem feito. A marca nas suas mãos sempre as explicara com uma qualquer luta própria das ilhas Antilhas. Escolhera trabalhar junto dos filhos daquele a cujo ombro devia a vida, mas nunca denunciando, senão pela generosidade, quanto devia ao seu pai. Procurara que as vidas deles fossem mais longevas do que a sua, dispensando-os, por isso, da exposição aos químicos que o forno alto sempre dispensava. Feita a última extração, em agosto de 1958, guardou a amostra que só pôde conservar sua por mais uns meses, pois um doloroso tumor lhe tomara conta dos pulmões, ainda que a generosidade com que preservou os seus companheiros os tenham salvado de igual fim. Quando me entregou esta peça, confiou-me, ainda, um arbusto, que me pediu que plantasse à entrada da mina do esgoto. Estranhei aquele pedido, mas cumpri-o. A planta que me confiou trouxera-a das Antilhas e dá pelo nome de ‘dama da noite’. Só floresce à noite, exalando um intenso perfume que se sente ao longe e atrai até os mais cegos dos morcegos. Queria assegurar-me, assim, que, à triste noite dos mineiros, sobrevém a esperança que rompe toda a escuridão da vida humana…
Se bem procurares, ainda ali floresce, viçosa. Se não a vês, sente-lhe o odor.