Ter. Jan 14th, 2025
Mystérios lusitanos | A vinte e três (23) de cada mês, habitamos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra…

(Nos ramos da escrita, repousam, vezes sem conta, as gralhas da distração, ocultas, sob múltiplos disfarces, até que alguém as enxote. Alberto Ferreyra contou com o fino olhar da sua amiga Teresa Correia, detentora do segredo da sua identidade, para afastar ou caçar o grasnar das gralhas. Está-lhe, por isso, muito grato…)

Alberto Ferreyra*

– Ando entusiasmado com a ideia de irmos a Sever. Já não vemos o avô, há uns tempos, e sei que aquelas terras estão cheias de histórias.

J. nem parecia saber conter-se de entusiasmo.

– Desta vez, és tu que não paras! – atalhou M., que era quem, habitualmente, tinha de ‘estacionar’ – como lhe dizia o pai – para acalmar, em dias de saídas de férias.

– Uma terra em que as memórias do tempo brotam do chão.

– Que coisa tão enigmática, J.!

– Já viste o que é visitares uma anta quase perfeita como a que podes encontrar no lugar da Cerqueira? E, pelo que ouvi dizer, nas imediações daquele monumento funerário, haverá mais perto de dez outros, dispersos pelos montes e escondidos entre a vegetação… E, como se não bastasse, o próprio nome da terra ‘Sever do Vouga’ traz à memória os tempos antigos. ‘Sever’ evoca o nome de um nobre ‘Severus’, sendo que o nome do rio, ‘Vouga’, será lembrança de um nome já dado pelos romanos, que poderia significar ‘vazio’, ‘vão’, pois Vouga virá de ‘vacua’…

Estou a efabular, pois, para ser honesto, li, há tempos, que o nome ‘Vouga’ já estaria estabilizado, antes dos inícios da nação, já no século XI, mas que haverá dúvidas sobre o seu real significado. Esta de ‘vazio’ foi conversa do meu professor de Moral que estudou latim e diz que é um possível significado…

– Bem, mas, J., já que estás com esse entusiasmo todo, então, vê se sabes esta. Tens ideia de como é tratado o pároco de Pessegueiro do Vouga?

– Sei lá. Tens cada uma… E isso é lá importante?

– Pois fica sabendo que é mais importante do que pensas. Segundo conta um grande historiador português que chegou a residir, durante algum tempo, no lugar do Carvoeiro, a poucos quilómetros de Pessegueiro, José Mattoso, terá existido um mosteiro em Sever do Vouga. Alertado por esta descoberta que vi no livro dele, ‘Portugal Medieval’, fui vasculhar e descobrir que, no século XI, esse mosteiro foi muito disputado por um tal Froila Gonçalves que parece que não seria lá muito boa pessoa… Hoje, como marca da existência desse mosteiro, que seria dedicado a Santo André, segundo o livro preto da Sé de Coimbra, os paroquianos de Pessegueiro do Vouga ainda chamam ao seu pároco ‘senhor Abade’.

– Essa é gira… ‘Senhor Abade’. Tem piada. E o pároco é barrigudo como os abados de outrora?

– Tens cada uma, M. Os abades não eram todos barrigudos. Eram, sim, homens de oração e de estudo e, talvez por isso, pela vida mais sedentária, alguns poderiam ter uma barriguinha maiorzita. Mas és injusta se só olhares para essa faceta deles… Os mosteiros tiveram um papel fundamental para que a ajuda e a cultura chegasse a todos os cantinhos de Portugal. Vê lá tu que até numa das freguesias mais interiores do que é, hoje, o concelho de Sever existiria um outro mosteiro, segundo nos conta esse mesmo livro preto da Sé de Coimbra. Seria um Mosteiro dedicado a São Paio, em Rocas. Era chamado Mosteiro de São Paio de Rocas de Sever, havendo referência a isso em 1002, início do século XI.

– J., tu estás uma perfeita enciclopédia sobre Sever do Vouga. Por isso estás tão entusiasmado.

– Acredita, M., que, ainda assim, o que me está a deixar em pulgas é outra coisa. O pai não se cansa de nos falar das aventuras dele com os primos, na quinta do monte. Acho que até chegaram a fazer lá uma casa na árvore, com paus, ramos e ‘feitos’, como lhes chamavam.

-Quinta do monte!? Guardaste memória disso? Realmente, tenho ideia de o pai falar nisso, mas achei que era uma aventura sem interesse. Fazer uma casa na árvore pode ter a sua piada, mas olha que me estava a entusiasmar mais visitar a anta ou o lugar do mosteiro.

– Bem… A anta ainda podemos ver, mas o mosteiro… Já nem há certezas sobre onde seria. Talvez no que é, hoje, o cemitério de Sever do Vouga, mas há muitas dúvidas. A visita ao lugar da casa da árvore está a prender-me o cérebro. É que o pai disse que haveria lá uma casa velha em que ele perdeu um bilhete significativo. Disse-me que, se o encontrasse, teria uma história para me contar. Mas a condição é encontrar o dito bilhete.

– São mesmo pulgas que tens. E das que saltitam de uns para outros. Quando chegamos?

O dia está um pouco sombrio, apesar de estarmos em pleno agosto…

Mal chegados a Pessegueiro, dados os abraços da praxe, a pergunta de J. e M. não podia ser outra: onde fica a ‘Quinta do Monte’?

Passado o Constantino e entrados montes dentro, lá chegaram ao seu destino.

– Já não se vê casa nenhuma. Isto está tudo tomado pelas heras, pelos tojos e silvas.

– Aquilo não é um monte de pedras? – disse M., entre a esperança e o medo.

– Há uma porta caída. Deve ser o que resta da tal casa velha.

O destino esperava…

Soltaram umas pedras mais roliças e, para seu espanto, as melhores expectativas logo se confirmaram. Entre pedaços de madeira podre, enrolado num pequeno saco de plástico, estava um amarelecido papel com uma enigmática mensagem: ‘Pensava já me terem esquecido. As tuas palavras dão-me alegria para estas últimas horas. Os médicos dizem que é hoje. Não te esquecerei.

P.S. J. 8 de outubro de 1991.’

– Parece uma mensagem de amor. O pai não te disse que era um bilhete que tinha a ver com ele? Queres ver que o pai teve uma história de que nunca nos falou?

Os passos de regresso pareciam entre o chumbo e o voo de ave. Ora velozes, ora temerosos, J. e M. não pareciam conseguir decidir-se sobre se acelerar ou retardar o passo.

Chegaram silenciosos…

Esperavam-nos a mãe, com um bolo de noz acabado de sair do forno. O pai, de olhar sobre o vale, permanecia de costas para eles.

O corpo parecia denunciá-lo…

– Pai, pode vir aqui?

Sem se voltar, disse-lhes:

– Vão ao cemitério de baixo, ao cemitério velho. Procurem a correspondência à última linha da mensagem.

De novo um temor se apoderou deles.

Mas obedientes, partiram, em corrida.

O cemitério distava uns quinze minutos, a correr. A estrada, interior à povoação, não era perigosa.

Procuraram, mas não se conseguiam entender com aqueles dados.

O que seriam o P., o S., o J.?

Não seria um ‘post scriptum?

Teriam de encontrar um J.?

Seria ‘Joana’, ‘Joaquina’ (‘Joaquina’ parecia esquisito…).

O melhor era começarem pela data. Seria uma data de nascimento?

Mas a mensagem dizia ‘os médicos dizem que é hoje’…

– Espera, J. Parece-me que seria a notícia da morte de alguém. Vamos procurar a data do falecimento.

Começaram a saga.

Havia um outubro, mas de 1992. Em 1991, só um jovem rapaz de 18 anos. Um ‘Paulo Sérgio’.

– Ui. ‘Paulo Sérgio’? ‘P.S.

Mas, e o ‘J.’?

– ‘Falecido na África do Sul’.

– Não seria o ‘J‘, ‘Joanesburgo’?

Regressaram, atónitos.

Os quinze minutos pareceram dois…

O pai permanecia de costas.

– O que descobriram?

– ‘Paulo Sérgio’, falecido em Joanesburgo?

– Fomos grandes amigos, na escola primária (era assim que se chamava o ‘primeiro ciclo’.). Separámo-nos, no final do terceiro ano. Ele foi para a África do Sul, com os pais, e nunca mais voltou. Não mais nos vimos. Um dia, no meio do zapping de televisão vazia, escrevi-lhe uma carta. A avó tinha-me dito que ele estava doente. A carta chegou no dia em que ele morreu. Ditou à irmã um pequeno bilhete (esse que encontrastes), que ela me trouxe, no dia do funeral. Depositei-o na casa onde tantas vezes brinquei com ele. Não consegui trazê-lo quando partimos de cá. Era uma memória dos dois. Devia permanecer onde os dois tínhamos sido felizes. Valia-me a lembrança de ter sido seu amigo, no último dia da sua vida. No dia do funeral, a irmã trouxera-mo e recordara-me a alegria que fora ler que eu me lembrava dele. A vida dele tinha valido a pena porque a amizade tinha permanecido para além dos longes e distâncias da vida.

O pai voltou-se para o vale. As lágrimas corriam-lhe, abafadas, dos olhos ao coração.

– Não podemos guardar este bilhete para nós. Tem de regressar ao lugar onde é memória do vivido.

Ainda hoje, as heras são mais verdes, na Quinta do Monte.


 

Imagem de Tumisu por Pixabay

 


*Alberto Ferreyra diz que as suas letras habitam a mente e saem da mão de alguém nascido em terras gaulesas, ainda que afirme, em sussurro, que o seu real nascimento ocorreu nas margens do Antuã, em abril de 2024. É, por isso, um prematuro autor literário, germinado da inspiração que a realidade proporciona quando se tem a companhia, nos livros, de génios como Jorge Luis Borges, Miguel Torga, Gabriel García Marquez ou personagens como Poirot ou Padre Brown.
Na sua escrita, cruzam-se o real e o imaginado, o fictício e o histórico, numa embrenhada teia em que o leitor continua a ler, mesmo já depois de fechado o conto. O real continua a fecundar histórias na mente de quem lê Ferreyra. Cada conto, feito dos mistérios desvelados, aproxima o tempo e distancia o espaço, esticando-o até ao eterno e ao infinito. Ao ler Ferreyra, faz-se ‘silêncio’ (‘mystério’ alude à etimologia grega da palavra, que remete para o ‘fazer silêncio’, ‘emudecer-se’…) para que possam ecoar as palavras, para que possa desenovelar-se o enredo sucintamente desvelado.
J. e M., protagonistas de cada um dos contos, acompanhados, em alguns deles, pelo seu periquito ‘branquinho’, fazem emergir, do real em que se enredam, histórias que, nascendo da imaginação de Ferreyra, permanecem como realidades possíveis, deixando a suspeita de terem mesmo ocorrido.
Se não foi real, Ferreyra o criará, inspirado numa cosmovisão que tanto deve àquela religião que fez do encarnado a condição fundamental do existir.
A vinte e três (23) de cada mês, habitaremos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra…