Seg. Fev 17th, 2025
Modos de interação entre ciência e religião 

“P”… [“Pautado…”]


Pautado pela Tecnologia

Miguel Oliveira Panão

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Marshall McLuhan disse uma vez que «nós moldamos as nossas ferramentas e depois as nossas ferramentas moldam-nos.» Quando Nietzsche teve um problema de saúde que o obrigava a usar uma máquina de escrever, os amigos disseram-lhe que ele estava a escrever de um modo diferente. A máquina começaria a moldar o seu pensamento. Pensamos muito sobre o que queremos da tecnologia, mas talvez exista também a faceta daquilo que a tecnologia quer de nós, ou não teria Kevin Kelly, um dos fundadores da revista Wired escrito um livro sobre esse assunto, “What Technology Wants”. Kelly inventa o termo technium para se referir ao conjunto interconectado de todas as tecnologias e invenções humanas, desde a roda até a internet, como uma espécie de “superorganismo” com necessidades e tendências próprias. O technium tem uma direção inerente de desenvolvimento que, em muitos aspectos, vai para além do controle humano. Ele sugere que as tecnologias evoluem de maneira semelhante aos seres vivos, seguindo padrões e trajetórias previsíveis. E Kelly explora ainda a ideia de que o technium pode ter seus próprios “desejos” ou tendências, e que a humanidade e a tecnologia estão juntas a co-evoluir. A realidade é que a nossa vida, hoje, é mais pautada pela tecnologia do que a nossa vontade em admiti-lo.

Não somos uma espécie que voa. Por isso, inventámos aviões para voar. Não somos tão rápidos como uma chita. Por isso, inventámos automóveis para correr ainda mais rápido. Não somos capazes de respirar no fundo do mar. Por isso, inventámos fatos com bilhas de oxigénio para sondar os mistérios aquáticos. A tecnologia é a nossa forma de co-criar com Deus. A tecnologia é a forma de superarmos as nossas limitações e irmos mais longe, e além, daquilo que a biologia nos diz que devemos ser. Curiosamente, nos últimos anos, a pauta que soa na nossa vida com a tecnologia que desenvolvemos parece ser diferente porque a tecnologia quer sempre mais para sobreviver. E o que a tecnologia precisa para sobreviver entrelaça-se com a nossa capacidade de sobrevivência.

A nossa capacidade de sobreviver não está tanto na inteligência, força ou engenho quanto na nossa capacidade de comunicar. Em “Walden e a vida nos bosques”, o escritor americano Henry David Thoreau comentava

«Os nossos inventos costumam ser belos brinquedos que distraem a atenção das coisas sérias. Não passam de meios aperfeiçoados para atingir um fim que não se aperfeiçoou, um fim que já lá estava e ao qual se chegava com facilidade (…). Apressamo-nos a construir um telégrafo magnético entre o Maine e o Texas, mas pode acontecer que o Maine e o Texas não tenham nada de importante a comunicar.»

A comunicação que nos permitiu sobreviver não assentava no que era banal, mas essencial para dar corpo, sentido e significado à nossa vida. E o desenvolvimento tecnológico que acompanhou o crescente desejo de comunicar permitiu fazer do mundo uma aldeia global, mas o que fizemos disso?

Construímos aeronaves cheias de defeitos que nos levaram até à Lua, mas abandonámos a exploração de outros mundos, e a compreensão do nosso planeta, para abraçarmos com toda a alegria as tecnologias de comunicação sem fricção como as redes sociais. É compreensível porque nem todos conseguem ou têm a capacidade humana de ir à Lua, mas todos podemos comunicar. E ao longo da conversão do nosso mundo real para uma versão digital fascinante, abrimos a porta do bar onde existe o néctar irresistível da informação. Estar informado tornou-se na forma de atingirmos um certo tipo de plenitude interior que preenche o nosso ser como jamais na história humana. E ainda por cima, parece grátis. E como o manancial de informação parece ser inesgotável, sem que nos déssemos conta disso, a capacidade de pensar e o gosto de o fazer tem diminuído. Deixamos que a tecnologia pense por nós. Se quiser saber seja o que for, já nem pergunto ou penso por mim. Clico.

O ser humano não vai muito longe com a energia que o corpo consome. Mas se colocarmos esse ser humano em cima de uma bicicleta, a capacidade de ir mais longe aumenta em 85% segundo S.S. Wilson num artigo que publicou em 1973 na Scientific American. Foi essa conclusão que levou Steve Jobs, co-fundador da Apple que faz os nossos iPhones, a dizer que o computador é a “bicicleta da mente” que leva o ser humano mais longe do que alguma vez foi. Mas o consumo excessivo da nossa atenção que não consegue encontrar rumo no mural infinito de informação que tem à sua disposição. Esse mural, subtilmente, aprisionar a mente com a sensação de saber através da gratificação instantânea que um simples deslizar do dedo pelo ecrã proporciona. Ainda te lembras do cheiro de um livro? Ainda te lembras de escrever com a mão?

Quem rege a pauta tocada pela tecnologia que está sempre presente em tudo, em todo o lado e a qualquer instante? Devíamos ser nós a pautar a tecnologia com os nossos valores, tornando-a nos meios e ferramentas que melhoram a nossa vida e o relacionamento com a casa comum através de um contacto profundo com o mundo ao nosso redor. Em vez disso, pusemos fim a tanta coisa que poderíamos fazer (ou não fazer) com as nossas mãos e pensamento. Uma vida pautada pela tecnologia parece ter-se tornado num destino incontornável a cada ser humano que nasce. E se não o podemos negar sem regredir, podemos sempre acolher para compreender como prosseguir.

O violino será sempre um instrumento que não toca por si mesmo. Precisa da mão humana para dar vida e melodia ao deslizar o arco pelas cordas. Ser pautado pela tecnologia não significa deixar-se dominar pelo que ela quer, mas distinguir os óculos que nos permitem ver, dos olhos de abelha das realidades aumentada ou virtual que apenas aproximam, ainda mais, o ecrã da nossa face. Como disse o jornalista Walter Mossberg no seu último artigo para a The Verge«Eu espero que um resultado final de todo este trabalho seja que a tecnologia, o computador dentro de todas essas coisas, se torne secundária. Em alguns casos, pode até desaparecer completamente.» — Ser pautado pela tecnologia, destinada a desaparecer, é redescobrir como pode a nossa vida ser pautada pelo que gera tecnologia: o gosto de pensar e ser criativo.


Imagem de Pete Linforth por Pixabay