Ter. Fev 18th, 2025
Modos de interação entre ciência e religião | Duas culturas

Duas culturas

Miguel Oliveira Panão*

Era uma noite fria em Cambridge quando C.P. Snow subiu ao palco para apresentar sua palestra de 1959, intitulada “As Duas Culturas e a Revolução Científica”. Ele começou com uma observação intrigante: enquanto caminhava pelos corredores da universidade, era evidente para ele que cientistas e humanistas quase nunca se encontravam, muito menos conversavam. Nesse discurso, Snow chamou a atenção para a crescente divisão entre as ciências e as humanidades, uma fragmentação que ele acreditava ser prejudicial à solução de problemas globais e ao avanço do conhecimento humano como um todo. Snow, ele próprio um cientista e romancista, estava numa posição única para observar a falta de comunicação e compreensão mútua entre esses dois grandes domínios do saber. É o que acontece um pouco dentro de nós e entre nós: vivemos muito entre duas culturas.

Na perspectiva de Snow, as “duas culturas” representavam dois universos intelectuais distintos: de um lado, os cientistas, com sua abordagem empírica e quantitativa; do outro, os intelectuais literários e humanistas, que privilegiam a análise qualitativa e o valor subjetivo da experiência humana. Ele argumentou que essa divisão não apenas dificultava o diálogo entre os especialistas de cada área, mas também criava uma lacuna cultural que afectava a sociedade em geral, uma vez que as soluções para muitos dos problemas mais urgentes da humanidade exigiam uma compreensão que envolve as disciplinas científicas e a humanistas, de modo a podermos ir para além dessas se quisermos, realmente, compreender a realidade e o nosso lugar no cosmos.

Um exemplo usado por Snow para ilustrar essa divisão foi o das questões técnicas e científicas enfrentadas durante a Revolução Industrial e o papel crucial que a alfabetização científica desempenha no progresso. Ele argumentava que uma sociedade incapaz de unir as ciências e as humanidades arriscava-se a se tornar tecnologicamente obsoleta ou eticamente descuidada, pois tanto o avanço científico quanto as considerações morais e culturais são essenciais para um progresso sólido da humanidade enquanto universo consciente de si mesmo. Porém, neste século e com a emergência da Inteligência Artificial, parece que estamos longe de estar tecnologicamente obsoletos, mas a polarização que vemos em muitos países manifesta como somos ainda uma sociedade eticamente descuidada.

A ideia da história humana desenrolar-se entre “Duas Culturas” pode significar muitas coisas e gera um certo debate. Alguns apontaram que Snow simplificou exageradamente as diferenças entre as disciplinas e negligenciou as áreas de intersecção, como a filosofia da ciência ou os estudos sociais da tecnologia. Outros argumentaram que a divisão descrita por ele apenas se intensificou nas décadas subsequentes, com a crescente especialização académica e a expansão de sub-disciplinas isoladas. Por outro lado, a obra de Snow também inspirou iniciativas para superar essa divisão.

Os movimentos na direcção de uma educação interdisciplinar, o aumento do diálogo entre as ciências e as artes, e o desenvolvimento de novos campos como as humanidades digitais e os estudos de ciência e tecnologia são exemplos de como a preocupação com as “Duas Culturas” continua relevante. Além disso, num mundo cada vez mais interconectado, os desafios globais como as alterações climáticas, a desigualdade social e os avanços já referidos da inteligência artificial tornam ainda mais urgente o esforço para integrar os diferentes saberes humanos.

A visão de C.P. Snow permanece um alerta e uma inspiração. A separação entre as “Duas Culturas” não deve ser vista como um destino inevitável, mas como um desafio a ser enfrentado pelo diálogo, colaboração entre saberes, uma educação e uma cultura literária e científica que valorize tanto o conhecimento exterior do mundo como o conhecimento da realidade em si mesma. Pois, cada uma das Duas Culturas procura oferecer uma visão da Verdade, mas como diria Pilatos num momento de grande tensão na vida de Jesus —«Que é a Verdade?» (Jo 18, 38) — Uma pergunta que pretende manter-se pergunta, mas que afecta profundamente a visão e vivência física, mental e espiritual de cada pessoa que pensa e ama.

Quando “Duas Culturas” separam qualquer experiência que temos da realidade, a cisão interior repercute-se em divisões entre as pessoas polarizando-as. Ninguém possui a Verdade porque essa revela-se como Caminho e Vida. Caminhamos juntos e vivemos juntos e só na Verdade podemos reconhecer nas nossas diferenças a grande riqueza que pode ser a humanidade no universo. A descoberta de vários binómios culturais é como descobrir as pontes que nos permitem percorrer o Caminho e Vida da Verdade.


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Imagem de Iván Tamás por Pixabay