Modos de interação entre ciência e religião
π [Pessoas & Ideias]
π.10 ~ Russel e a Abertura Intrínseca
Miguel Oliveira Panão
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Sentado na minha mesa de trabalho onde analisava as últimas medidas que tinha feito em laboratório, coloquei os auriculares e ouvia atentamente o físico e teólogo Robert John Russell. As suas palavras misturavam inusitadamente as ideias que o tornam único: uma paixão inegável e contangiante, capturando a imaginação de todos ao explicar como a ciência e a religião, a física e a teologia, podem, não apenas coexistir, mas lançar luz uma sobre a outra. Ele aborda as leis do universo com a precisão de um físico e, no momento seguinte, mergulha em questões de fé e significado com a profundidade de um teólogo. Para Russell, esses campos não estão em conflito, mas complementam-se, cada um oferecendo uma perspectiva única sobre a complexidade do mundo. Depois de o ler compreendi melhor a tensão criativa entre ciência e religião que desperta a imaginação de todo aquele que ousar sair da zona de conforto das suas crenças.
«”Não ponhas Deus nas minhas equações.” — Estamos de acordo porque seria idolatria; isso seria transformar a natureza em Deus. Tu podes estudar o mundo da ciência sem invocar Deus como uma explicação.» (“Cosmology, evolution, and ressurrection hope: Theology and Science in Creative Mutual Interaction”, Pandora Press, 2006)
Aqueles que confundem ciência com a percepção de Deus que podemos estudar através da teologia, tendem a pensar que a falta de referência a Deus nas equações e explicação, como Laplace a responder a Napoleão de que não necessitava dessa hipótese (Deus), seria um sinal de que Deus não existe. Portanto, tudo o que não referenciamos, não existe? Parece ridículo, mas o que aprendi com Russell foi que — «O problema aqui de não nos referirmos a Deus não quer dizer que Deus não existe. (…) A ausência de evidência não é evidência de ausência.» — Um aforismo simples, mas insolitamente esclarecedor que nos transporta para lá das abordagens dicotómicas na forma como se usa a ciência e a teologia para aprofundar a Realidade.
A perspectiva que Russell oferece para compreendermos a acção de Deus é o ADONI — Acção Divina Objectiva Não-Intervencionista (NIODA em inglês) — «A ideia é a de haver nos próprios processos evolucionários uma abertura inerente na qual Deus pode agir. Não é o argumento das “lacunas”, uma vez que Deus não está a intervir na evolução; pelo contrário, Deus está já imanente na natureza como Trindade, agindo a partir do interior da abertura que doou ao universo ao criá-lo.» — A incerteza intrínseca ao mundo que a mecânica quântica revela é uma expressão física da realidade metafísica da abertura intrínseca que Russell sugere como chave de leitura de uma acção de Deus não-intervencionista. Um outro aspecto desta abertura intrínseca manifesta-se nos sistemas abertos estudados pela Termodinâmica.
Ilya Prigogine que venceu o Prémio Nobel da Química em 1977, estudou as “estruturas dissipativas” nos sub-sistemas abertos que estão do interior de sistemas fechados maiores do que esses. O resultado evolutivo dessas estruturas seria a “ordem a partir do caos”. E teria sido através destas estruturas que a vida emergiu no universo. Russell considera os sistemas abertos onde isto acontece um reflexo da ADONI no mundo físico. Em cada experiência no mundo físico há uma alteração de entropia, que seja essa uma experiência de amor ou violência. Por isso, Russell associa a entropia a um «percursor na física ao mal natural.», mas eu não sei se estou de acordo. Entropia, uma palavra inventada por Rudolph Clausius cuja raiz etimológica significa transformação interior, é “cega” às consequências da mudança ocorrida. Logo, tanto pode ser um sinal percursor na física de um bem, como de um mal. Porém, a resposta que Russell oferece para a razão de haver mal num mundo criado por Deus amor (teodiceia) é interpelante: «a melhor resposta para teodiceia cósmica é a esperança escatológica futura de uma Nova Criação.»
O olhar de Robert Russell não se volta para o pés onde consideramos estar o presente, mas em frente para acolher o futuro que talvez vivamos já, mas não ainda (escatologia) totalmente. Um futuro que não estagna à espera da vinda de Deus, mas trabalha a nossa sensibilidade à Sua presença no meio de nós que se manifesta pelo amor como realidade profunda que nos constitui.
«Deus ama e sofre connosco — e não somente connosco, mas com todas as criaturas capazes de sofrer. Cada pardal que cai é importante para Deus do ponto de vista de Jesus. Por isso, Deus sofre com a evolução da vida. O nosso mundo é criador de almas nas quais Deus age como amor “sofrento-redentor”.»
E eis que o fruto desse amor “sofrento-redentor” se manifesta pela primeira vez na história do universo pela Ressurreição de Jesus, onde Deus cria «o primeiro exemplo de uma nova lei da natureza». Na Ressurreição de cada ser em Jesus, a estrutura regular da natureza, depois de oferecer a dinâmica da sua vida à dinâmica do próprio universo, faz-se novamente pó para entrar no novo paradigma da Nova Criação que a Ressurreição de Jesus deu início. Nessa “nova lei da natureza”, o visível une-se ao invisível abrindo novos horizontes de compreensão do cosmos. O desafio de compreender o mundo físico eleva o nível de interpretação e percepção da realidade e só um diálogo profícuo entre ciência e religião de Interacção Mutuamente Criativa (expressão de Russell) poderá ajudar-nos a conhecer melhor este Novo Universo. Um Universo onde o Amor, que foi a sua primeira “Palavra”, se revela como o caminho e a sua “Palavra Última”. Ou seja, há tanto ainda por descobrir = amar.
Imagem de Barbara Jackson por Pixabay