Letra viva | Valores de uma cultura que cuida e não mata
Rubrica dedicada à reflexão sobre o dever de cuidar de todos e os riscos de legalizar a eutanásia
Mafalda Miranda Barbosa*
A eutanásia voltou a estar na ordem do dia. Apresentada sob a capa da modernidade, envolve a invocação de um «direito a morrer».
Na base de tal invocação deste estaria uma ideia de liberdade e de dignidade. Aí onde o ser humano se torna mais radical, ao ponto de questionar a própria vida, não poderiam deixar de estar presentes noções que marcam indelevelmente a essência do ser pessoa. Ao horror da morte, para mais dada por outrem, contrapor-se-ia o consentimento do lesado. Far-se-ia intervir a sua vontade, de tal modo que o ato inicialmente desvalioso passasse a merecer o beneplácito dos comuns e a ser cunhado eufemisticamente como morte assistida.
Esta ideia é particularmente sugestiva no nosso tempo. Este tempo que é o nosso é, de facto, um tempo de liberdade. Consoante nos ensina Castanheira Neves, o mundo tem assistido à morte dos referentes valorativos para que viva a liberdade. Só que “essa liberdade consequente ao vazio não pode ser ela mesma uma abertura vazia – o que seria uma liberdade de absurdo e que desse modo a si mesma se negaria – assim como não será, em alternativa, a da vontade absoluta da autonomia incondicional que em si mesma assuma o infinito (…), já que nessa liberdade (….) também menos o homem autenticamente se reconheceria, pois o homem só o é na sua existência, no ser e na história, pelo transcender-se a algo convocante com que dialogue na procura da resposta às perguntas fundamentais”[1]. Haveremos, pois, de compreender a liberdade para, através dela, refletirmos sobre a eutanásia.
Depois, este nosso tempo é um tempo de afirmação da dignidade do homem. Mas há que ser, também aí, especialmente cauteloso, para que com essa dignidade, e subsequentemente ao vazio, não se abram afinal as portas ao que é indigno.
Os argumentos da liberdade e da dignidade sofrem de uma incompreensão valorativa quando associados à eutanásia. Pelo que urge – este é um tempo de urgência – esclarecer o que, muitas vezes propositadamente, querem fazer confundir.
A primeira questão que deve ser seriamente enfrentada quando lidamos com a eutanásia é a de saber do que falamos quando a ela nos referimos. Ora, quando convocamos o conceito de eutanásia, não falamos de situações em que a pessoa está cerebralmente morta (e, portanto, juridicamente morta, já que o conceito legal de morte é a cessação de funções do tronco cerebral, a determinar o termo da personalidade jurídica, de acordo com o artigo 68º C.C.), mesmo que se encontre, ainda, ligada a um suporte de vida (designadamente para efeitos de transplantação de órgãos); não falamos de situações de combate à obstinação terapêutica; nem falamos de situações em que o médico ministra certos medicamentos ao paciente (para alívio das dores e do sofrimento), que podem ter como consequência lateral o encurtamento da sua vida. A eutanásia, ao invés, corresponde a dar a morte a alguém, antecipadamente, a pedido da própria pessoa (daí que se fale de eutanásia voluntária, que é a única – para já e contra aquela que parece ser a consequência da rampa deslizante a que se assiste noutras latitudes onde o fenómeno foi liberalizado), quando esta se encontre em determinadas circunstâncias, o que significa que o sujeito não pode abdicar de viver em qualquer caso, mas apenas naquelas hipóteses que são previstas pelo legislador, o que, portanto, nos remete para a anunciada questão da autonomia.
Ora, se na base da invocação do direito a morrer está uma ideia de autonomia, o problema que se tem de enfrentar, e Castanheira Neves também o afirma claramente, é o de saber se na autonomia da pessoa cabe a decisão de deixar de viver. E se assim é, então, o problema com que lidamos é o do sentido da própria autonomia[2]. E para tal duas são as perspetivas que assomam no horizonte discursivo: um sentido individualístico, que encerra a pessoa sobre si mesma; e um sentido pessoalista, que convoca uma dimensão ética de responsabilidade comunitária (pelo outro, perante o outro) e de responsabilidade por si mesmo. Para a primeira perspetiva, o direito a morrer seria absolutamente legítimo, por aquele indivíduo reivindicar para si uma liberdade negativa de ausência de constrição, muitas vezes traduzida num direito a estar só; para a segunda perspetiva, o direito a morrer seria absolutamente ilegítimo. Vejamos.
A liberdade pode ser entendida num sentido individualístico, empobrecedor, como uma mera ausência de constrição heterónoma. O homem, tido por autossuficiente, é compreendido, nesse quadro, como um ente que se situa antes de qualquer contacto social, um indivíduo, em confronto com os demais – tidos como obstáculos à realização das suas aspirações – e com o Estado. A grande preocupação que avulta é, portanto, a da limitação do poder daquele – forjado com base no mecanismo do contrato, através do qual o indivíduo lhe transfere parte dos seus direitos, de modo a garantir a ordem e sair do estado de natureza – e qualquer imposição ou proibição surge como anómala, como uma limitação da vontade do indivíduo. A liberdade seria, então, a mera liberdade negativa. A ela associar-se-ia uma ideia de liberdade positiva, entendida como autonomia ou poder de autodeterminação, e caracterizada pela possibilidade de opção entre diversas alternativas de ação. Sem que, contudo, essa liberdade positiva seja, também ela, sempre adequadamente compreendida, já que nenhum fundamento postula para a escolha que se haverá de operar.
A eutanásia livre representaria isso mesmo, uma forma de exercício da autonomia, ainda que de um modo radical e inultrapassável.
Contudo, esta ideia de liberdade só seria defensável se olhássemos para o direito como uma pura forma, totalmente dependente da voluntas do legislador. Simplesmente, o direito não pode ficar dependente da pura vontade (tendencialmente arbitrária) do legislador, nem se sustenta num ficcional consenso a priori ou num dialógico consenso a posteriori. Antes implica uma pressuposição ético-axiológica. A afirmação de uma liberdade positiva desarreigada de um sentido ético subjacente que a vivifique só poderia ser logicamente aceite se, a priori, aderíssemos a duas teses redutivistas. A primeira a sustentar um arquétipo jurídico meramente formal, dado que a tutela da liberdade como mera possibilidade de escolha pessoal – independentemente da materialidade que subjaza ao critério mobilizado pelo agente – só é configurável se e na medida em que o direito se contentasse com a mera ordenação de condutas que aparentemente cairiam sob a chancela da liberdade. Donde, uma segunda tese redutivista teria de necessariamente ser abençoada: aquela que reduzisse a juridicidade a um acervo de normas postas pelo órgão legitimado politicamente para o fazer. Pois que só assim seria pensável a posteriori a eliminação da problematicidade do agir, como se tudo redundasse no binómio: a lei proíbe e há uma restrição à liberdade; a lei não o proíbe pelo que o comportamento é permitido, sendo tutelado pela nota do valor – embora desvalioso – que se assumia como cimeiro. É que, ao pressupormos que a juridicidade é mais ampla que a legalidade, somos instados a estender o nosso raciocínio de forma congruente e levados a pensar que, diante de uma dada situação que, colocando um problema de partilha do mundo, convoque a cobertura do direito, ela só pode ser solucionada com apelo a um mínimo de eticidade que, em primeira instância, nos vai permitir relevar o seu cunho jurídico[3]. De outro modo, perderíamos a possibilidade de encontrar um critério de ajuizamento. E mesmo que – o que só por facilidade argumentativa aceitamos – admitamos o raciocínio do tipo o que não é proibido por lei é permitido, como justificar a opção do legislador de salvaguardar uma dada posição em detrimento de uma antagónica, sem a pressuposição de um valor ético que, transcendendo a situação concreta, a permita ajuizar[4]? Em última instância, correríamos o risco de forjar uma ordem regulativa – como foram muitas ordens ordenadoras de condutas – que, ainda que formalmente fosse uma ordem de direito, não seria uma ordem do direito. O relativismo como expressão do pluralismo conduzir-nos-ia à renúncia do próprio direito.
E se tudo isto depõe no sentido da imprestabilidade da compreensão do direito como pura forma, na total dependência da voluntas do legislador, sempre tendencialmente arbitrária, implica também a impossibilidade de a liberdade – no direito – ser ancorada na pura vontade subjetiva do agente decisor[5], sob pena de se chancelar como valiosa uma conduta materialmente desvaliosa só porque vestida com a capa formal da liberdade e, com isso, se contrariar a intencionalidade do próprio jurídico. A ação livre não pode, pois, continuar a ser vista na solidão atomizante do homem-vazio que atende à sua vontade no sentido instintivo do seu ser. O posso, quero e mando em que ela se vem a traduzir desvirtua a dimensão em que se polariza e converte um valor num não-valor. A escolha livre deve, então, ser vista como a decisão que, na autodeterminação pessoal, não olvida a essência predicativa do ser pessoa[6], já que é nesse ser pessoa, enquanto categoria axiológica, que o direito encontra o seu fundamento último. Dito de outro modo, a liberdade só o é verdadeiramente, enquanto dimensão ontológica da pessoa, se ela não se descaracterizar, isto é, se for e enquanto for a manifestação da pessoalidade de quem a reivindica[7]. De acordo com Castanheira Neves, o direito é uma ordem normativa. Tem como finalidade ordenar condutas, para o que assume uma determinada intencionalidade, a traduzir uma validade. E, para que essa validade não resvale num sem sentido ordenador do encontro no mundo, ela não pode deixar de convocar – para ser verdadeiramente válida – uma axiologia fundamentante. Que vem a encontrar-se, afinal, naquele sentido de dignitas que a ética descobre no encontro – entendido no sentido do reconhecimento e do respeito – do eu com o tu. Pelo que o reconhecimento da liberdade do homem terá de surgir como um mínimo de sentido com base no qual o jurídico se edifica e cumpre o seu papel no todo social. Então, esta liberdade, porque a ela recorremos na pressuposição da leitura ético-axiológica do dado ontológico, não é mera definição de uma esfera de não interferência do outro, sequer uma estrita possibilidade de escolha entre possibilidades de ação que olvide o outro – o tu – que, com a sua pretensão de respeito, e o convite à abertura de pontes de solidariedade comunicantes entre humanos, permite o reconhecimento da ineliminável dignidade ética do eu. É antes uma liberdade eticamente informada e enformada. Ora, com o exercício da autonomia que pretende fundamentar o fim da própria vida, o homem nega o seu estatuto de pessoa, porque corta radicalmente a ligação com o outro, que o permite ser na sua integral dignidade. Amputa os outros do eu, pelo que não poderá configurar o exercício de uma liberdade, mas o abuso de uma liberdade. O homem pessoa é comunitariamente responsável pelo outro, perante o outro e por si. Ao pedir para morrer, impede os outros do exercício da responsabilidade em relação a si, priva-os de uma dimensão essencial da sua humanidade, impedindo-os de se reconhecerem na sua integral dignidade que também é desvelada na fragilidade do corpo e da mente, pelo que a legalização da eutanásia deixa de ser compatível com o próprio sentido do direito[8].
A descoberta do sentido do direito a implicar a compreensão da liberdade em termos ético-axiologicamente cunhados não pode deixar de ter consequências no plano dogmático. A primeira delas passa pela consideração de que não existe um direito a morrer. Não é possível conceber um direito da pessoa que leve à destruição da própria pessoa, porque tal contraria a própria estrutura axiológica do direito, sendo a norma que o previsse uma lei injusta, no sentido metodológico do termo. Um direito a morrer é um não direito, tal como o é o direito a ficar doente ou o direito a perder a liberdade.
Estando em causa um direito que tem por objeto uma dimensão da própria pessoa – independentemente, agora e para estes efeitos discursivos, da configuração exata dela –, ele não pode deixar de se inserir na categoria dos direitos de personalidade. Ora, o direito de personalidade, qualquer que ele seja, tem um determinado fundamento: a pessoa, na sua ineliminável dignidade ética. Por isso, não é possível invocar um direito que contrarie a sua estrutura valorativa. Apesar de conceptualmente o direito subjetivo continuar a assentar num poder de vontade, na esteira das propostas de Savingy e do afastamento da teoria do interesse de Iherging, aquele não consubstancia, nem pode consubstanciar, uma vontade arbitrária e sem sentido, mas há-de traduzir necessariamente uma vontade axiologicamente sustentada. O que quer dizer que, estando em causa um direito de personalidade, o homem não passa – por ser seu titular – a deter um poder absoluto sobre si mesmo, transformando-se num escravo de si próprio, porque o homem que o titula é pessoa e, como tal, o seu exercício há-de estar em consonância com a estrutura valorativa em que se funda. É claro que existe a possibilidade de se limitarem voluntariamente os direitos de personalidade. Mas, o ordenamento jurídico estabelece limites para o próprio consentimento: ele não pode ser contrário, sob pena de nulidade e nos termos do artigo 81º CC, aos princípios de ordem pública, e, nos termos do artigo 340º/2 CC, não pode violar os bons costumes. Ora, mesmo não concretizando as cláusulas gerais mobilizadas, haveremos de considerar que se se admite a morte a pedido, com fundamento no consentimento, deixa de haver limites para a figura, que pode passar a ser convocada de acordo com a vontade arbitrária do titular dos direitos de personalidade, que, assim, se tornam renunciáveis. Em última instância, isto conduziria ao desaparecimento do próprio direito tal-qual o conhecemos. Na verdade, o ordenamento jurídico que aceite a morte a pedido haverá de admitir que o sujeito ampute as suas pernas e braços por meras razões estéticas (ainda que de gosto duvidoso) ou que o sujeito queira ser escravo de alguém, privando-se da sua liberdade.
Acresce que o consentimento a que nos referimos tem de ser livre. Mas pergunta-se se uma pessoa que se encontra numa situação de profundo sofrimento – aquela que, de acordo com os projetos de lei em discussão, é contemplada, para já, pelos defensores da eutanásia – tem o perfeito domínio da vontade para poder formar um consentimento livre. Repare-se, aliás, na contradição valorativa em que, a ser legalizado o comportamento, o ordenamento jurídico se deixaria enredar. O artigo 2194º CC determina que é nula a disposição a favor do médico ou enfermeiro que tratar o testador, ou do sacerdote que lhe prestar assistência espiritual, se o testamento for feito durante a doença e o seu autor vier a falecer dela. A mesma invalidade é pensada para as doações que em que sejam donatárias as mesmas pessoas e que sejam celebradas nas mesmas condições, por força do artigo 953º CC. O ordenamento jurídico entende que, numa situação como esta (de indisponibilidade relativa), a pessoa não tem o total domínio da sua vontade, pelas circunstâncias em que mergulha, de tal modo que pode vir a ser influenciada por aqueles que mais proximamente a auxiliam. Mas este mesmo ordenamento jurídico, uma vez admitida a eutanásia, passa a considerar que, nas mesmas circunstâncias de doença terminal, a pessoa tem do domínio da vontade para prescindir da sua vida, nem sequer equacionando a hipótese de também aí o sujeito poder ser condicionado e negativamente influenciado. No fundo, após a legalização da eutanásia, ver-nos-íamos mergulhados num sistema que protegeria mais fortemente a dimensão patrimonial do que a dimensão pessoal do ser.
Mas pergunta-se mais: qual é, afinal, o grau de sofrimento que se exige para que possa ser considerado o pedido para morrer? E como é que ele se mede? Será que o simples sofrimento moral é suficiente? Uma pessoa com uma depressão pode requerer a eutanásia? E, a ser afirmativa a resposta, será que uma pessoa que padece de uma patologia desta natureza, pode formar a sua vontade de um modo livre e são? E não se diga, em desmerecimento do que se questiona, que esta não é uma possibilidade por não estar contemplada nos projetos lei que serão em breve discutidos. É que também além-fronteiras se começou por tentar face ao sofrimento físico e, posteriormente, o âmbito de aplicação da permissão foi amplamente alargado em termos subjetivos, permitindo-se em alguns países a eutanásia de crianças e deficientes (a fazer-nos resvalar para hipóteses de eutanásia involuntária), de pessoas cansadas de viver, de pessoa inadaptadas às condições da vida moderna, naquilo que já é dramaticamente apelidado por imparável rampa deslizante[9].
Pergunta-se, ainda, se, num país onde os cuidados paliativos são quase inexistentes, onde o hedonismo grassa, onde as famílias enfrentam graves problemas de cuidar dos mais idosos, sem que recebam para eles respostas do Estado, onde as altas problemáticas relatadas pelos hospitais são crescentes, não estaremos com a eutanásia a abrir as portas, perigosamente, para que muitas pessoas sejam empurradas para a morte, não pela dor, mas pela falta de amor, por se sentirem um fardo.
Muitos haverá que defendem a eutanásia por motivos piedosos, por um falso sentido de compaixão, do qual não se apercebem. Importa, por isso, enfrentar a derradeira reflexão. Não será possível olhar para a eutanásia de uma outra perspetiva, invocando-se a ideia de morte digna e de qualidade de vida? A este propósito, Castanheira Neves evidencia a inadmissibilidade de tal perspetiva, recuperando argumentos incontornáveis de pendor filosófico. De acordo com a sua explicitação, “sabe-se da origem histórica do conceito. Desde o seu primeiro uso por Nietzsche (que num radical biologismo defendia o abandono da vida desde que inútil e com sofrimento), passando pela proposta brutal e, surpreendamo-nos, de um célebre jurista e penalista, nada menos nada mais do que Karl Binding, que (…) proclamava que a sociedade teria o direito de libertar-se do peso económico de uma vida indigna (…), proposta esta da eutanásia (…) que havia de encontrar consagração nas leis eugénicas do nacional-socialismo”[10]. E se é certo que o autor esclarece que outros são os entendimentos derramados atualmente sobre o conceito de qualidade de vida – designadamente aqueles que nos são comunicados por uma racionalidade de pendor funcionalista – não menos seguro é que também esses prismas são por si afastados, por implicarem que a qualidade de vida funcionaria como condição suspensiva do respeito que cada ser humano merece.
Vejamos, agora através do nosso verbo: a ideia de dignidade de vida para justificar o pedido de morte faz inculcar a ideia de uma vida indigna, o que põe em causa o princípio da dignidade da pessoa humana, que não comporta exceções ou gradações. Na verdade, se apenas alguns podem, de acordo com as circunstâncias, pedir para morrer, isso significa que apenas esses são os que não possuem qualidade de vida que a torne inviolável. Com isto, o ordenamento jurídico passa a considerar duas categorias de pessoas: as pessoas dignas, que têm de ser protegidas contra elas próprias, não podendo atentar contra a sua vida ou pedir para morrer; e as pessoas com uma vida indigna que podem solicitar o aniquilamento da sua existência. Além disso, pergunta-se: quem pode decidir que vidas são ou não dignas. É claro que o pedido de morte é feito pelo titular do direito, pelo que a vida humana é ajuizada pelo próprio e não por um terceiro, mas é um terceiro (o legislador) que fixa a priori as condições com base nas quais cada um pode ajuizar se quer ou não renunciar ao seu direito à vida, pelo que, previamente, será o Estado a definir quem é e quem não é digno.
E se a qualidade de vida que se chama à colação é agora funcionalista, este não deixa de ser, por um lado, um funcionalismo desumanizador que procura esconder o sofrimento e lhe retira qualquer sentido, dando a entender que a dignidade da pessoa não radica nela própria, mas nas circunstâncias que a rodeiam, e, por outro lado, um funcionalismo perigoso, que abre as portas a uma racionalidade eficientista de pendor económico, oferecendo aos Estados a solução mais fácil – mas ainda assim mais aterradora – para os problemas do défice na segurança social e na saúde[11].
[1] A. Castanheira Neves, “O “jurisprudencialismo” – proposta de uma reconstituição crítica do sentido do direito”, Teoria do direito: direito interrogado hoje – o jurisprudencialismo: uma resposta possível? Estudos em homenagem ao doutor António Castanheira Neves (coord. Nuno Coelho; Antônio Silva), Salvador, 2012. p. 9-79, 24 s.
[2] Cf., num texto rico de referências filosóficas, A. Castanheira Neves, “Arguição nas provas de agregação do Doutor José Francisco de Faria Costa – comentário crítico à lição O fim da vida e o direito penal”, Digesta, vol. 3º, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, 618 s.
[3] Cf. Mariá Brochado, Direito e ética: a eticidade do fenómeno jurídico, São Paulo: Landy, 2006. Cf., também, Germano Marques da Silva, « Justiça, liberdade, direito e ética – diferença na unidade », Direito e Justiça, Revista da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, vol. XI, tomo I, 1997, 5 a 13.
[4] A dúvida não é exclusivamente nossa, tendo sido colocada anteriormente por diversos autores. Nesse sentido, cf. A. Castanheira Neves, “Pessoa, Direito e Responsabilidade”, 27.
[5] Ligando o modo como concebemos a liberdade a uma dada conceção de juridicidade, cf. A. Castanheira Neves, “Pessoa, Direito e Responsabilidade”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, nº6, 1996, 17
[6] Cf. Cabral de Moncada, Filosofia do Direito do Direito e do Estado, I. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, 38-39
[7] No fundo, o que se pretende salientar é que a liberdade não se reduz a um decidir no vago entre duas possibilidades de ação, porque isso não distinguiria, verdadeiramente, o homem de qualquer outro animal. A decisão livre implica – não sendo possível nunca a redução da complexidade da eleição pelo absoluto conhecimento das consequências da ação – um salto qualitativo que, na sua radicalidade, e com toda a angústia mínima ou máxima que carrega, não pode ser dado no vazio, antes implicando uma referência de sentido: a pressuposição de algo, numa perspetiva empírica do tipo analógico, que, transcendendo a própria vontade arbitrária (ou a dimensão instintiva do desejo), o sustente. É por isso que uma decisão – qualquer que ela seja – pode ser explicada e fundamentada, havendo infindáveis – e quantas vezes insindicáveis – motivos para cumprir tal desiderato. Só que, do ponto de vista ético e jurídico – já que este faz apelo ao primeiro –, torna-se improcedente o acolhimento da panóplia global de motivações individuais, na medida em que tal implicaria desconsiderar o cerne da pessoalidade em que ambas as ordens normativas se colimam. Donde resultam duas consequências. Do ponto de vista da liberdade, se esta é um atributo essencial da pessoa, o seu uso em contradição com a eticidade que a enforma e informa implica uma degradação da própria liberdade.
Por outro turno, do prisma da fundamentação do jurídico e da judicativa realização em que ele se cumpre, o desvalioso – porque contrário à dignidade da pessoa humana – não pode ser chancelado, num autismo obnubilador da axiologia fundamentante, como valioso por mero apelo a uma carapaça formal.
Cf. Castanheira Neves, Questão de facto e Questão de Direito ou o Problema Metodológico da Juridicidade (ensaio de uma reposição crítica). A Crise, Almedina, Coimbra, 1967, 472 a 474.
[8] Paulo Otero, num artigo de opinião publicado na imprensa nacional no dia 20 de Maio de 2018, refere que a legalização da eutanásia seria inconstitucional, por pôr em causa a inviolabilidade da vida e da sua dignidade que se projeta também no momento da morte. Cf. http://www.sabado.pt/portugal/detalhe/paulo-otero-a-morte-a-pedido-da-vitima-e-inconstitucional
[9] No artigo de opinião referido supra Paulo Otero apresenta um exemplo curioso. Ponderando o problema em geral, coloca a hipótese de um condenado a uma pena de prisão de 25 anos – pena máxima em Portugal – pedir, pelo sofrimento que isso lhe provoca – para morrer. O expediente argumentativo é brilhante, porque nos permite olhar para a eutanásia como aquilo que ela é: uma condenação à morte, um ataque à inviolabilidade da vida, uma contradição plena em relação à proibição da pena de morte que, aqui, surge, por via da referida eutanásia, como uma comutação de uma pena privativa da liberdade.
[10] A. Castanheira Neves, “Arguição nas provas de agregação do Doutor José Francisco de Faria Costa”, 614
[11] Ainda por referência ao texto publicado na imprensa nacional, Paulo Otero chama-nos, a este propósito, para um outro problema. Na verdade, sendo o nosso sistema económico caracterizado pela coexistência constitucional entre o setor público e o setor privado, poder-se-á vir a enfrentar no futuro o problema de saber se os privados poderão vir ou não a prestar o «serviço de eutanásia», podendo surgir, à semelhança do que ocorre na Suíça, clínicas destinadas a fornecer a eutanásia aos seus clientes.